No mais recente livro de Ivo Machado, miseriae, o décimo quarto da sua obra poética iniciada em 1981, o leitor acompanha, ao longo de quatro dezenas de poemas, a voz poética de um sujeito lírico que reflete acerca das “assimetrias / da vida”, numa incansável procura de onde sobressai, marcadamente, o desalento.
Prefaciado por Mário Cláudio, o livro apresenta-se dividido em quatro partes (“aurora e crepúsculo se fundem”, “miseriae”, “as estrelas não estão maduras” e “obrigado, senhor Stravinsky”), assimétricas quanto ao número de poemas que as constituem mas próximas na perturbante inquietação que atravessa toda a obra.
Através da sua leitura podemos acompanhar uma voz reflexiva, profundamente triste e elíptica que em fragmentos líricos daquilo que poderíamos colar num único poema, um longo monólogo interior, retrata primeiro um persistente desalento quotidiano, identificável em temas como a solidão, a tristeza, a passagem do tempo, a memória, entre outros, e depois, com a aparição de um “tu” (amoroso?) no corpo dos poemas, traços de ténue esperança.
A experiência da morte, próxima (“Voltamos da morte / a dor amadureceu como um fruto”) parece assumir um papel transformador nessa tentativa de metamorfose – aqui pontuam os melros-pretos e a música como elementos salvíficos – constituindo-se também numa oportunidade para questionar a existência do divino (“o Deus que existe ou não em mim / não fala quando espero que fale”).
Pese embora a dicção presente nos poemas seja maioritariamente concreta, o uso da elipse e da justaposição criam atmosferas pessoais, muitas vezes dolorosas, algo abstractas nas quais o silêncio e a alusão coexistem, num equilíbrio precário que esculpe a mancha gráfica de cada poema numa só página. Pequenas instalações da alma. A este estado de inquietação e melancolia, o autor associa conscientemente a ideia de miséria, precariedade, exiguidade, pobreza, identificando nesse caminho, a região onde se encontra: “O abismo é um lugar / onde o sol não entra”.
O tom geral é o de uma voz que não se ilude, no sentido em que não mente a si própria, não se ilude quando procura respostas para as inquietações do sujeito poético, satisfeita com nada menos que a verdade.
Por dura que seja. Aqui e ali levantam-se algumas notas de optimismo (“abri a janela, ajeitei o coração”) como, por exemplo, num dos poemas que mais apreciei (“Às formigas faço perguntas”), onde a voz se perde fazendo perguntas àqueles pequenos seres que, naturalmente, nada lhe respondem prosseguindo com os seus afazeres, afirmando o poeta ser essa “a beleza do mundo”, a possibilidade de prosseguir e continuar indiferente à nossa presença. Passível de encorajar uma reacção: “resistir é perguntar ao Tempo / pela palavra que há-de nascer”.
Pergunta-me diversas vezes por qual dos livros publicados começar a ler um poeta. No caso de Ivo Machado, miseriae constitui uma boa porta de entrada à sua poética.