quinta-feira, novembro 24, 2022

SÉRGIO ALMEIDA

 


REVOLVER

Sérgio Almeida

Guerra & Paz, Maio 2022

80 páginas

 

Ao contrário do que à primeira vista podemos ser levados a pensar, o título do mais recente livro de Sérgio Almeida, Revolver não é o substantivo sinónimo de “arma” mas o verbo sinónimo de “remexer” ou “revirar”. 

Este primeiro jogo de linguagem com que o autor nos surpreende – e que, de certa forma constitui, a meu ver, o primeiro poema do livro –, prepara o leitor incauto para um regresso ao passado num processo que ameaça não ficar pela superfície das memórias, mas que se propõe escavar as sucessivas camadas que o tempo sedimentou, e cuja recuperação se pode vir a revelar dolorosa como o efeito de um disparo, ou no mínimo, pouco asséptica como um remexer de lama. 

Para o autor “O passado é uma arma carregada de memórias”. O livro dá-nos a ler 45 textos que revisitam temas como a infância (“fazíamos do limiar da realidade a nossa habitação permanente”), a família, o amor (“nem por um segundo apenas desejo libertar-me desse peso”), a morte (“Tenho medo de perder o medo da morte”), a vida quotidiana (“a sinuosa vontade de passar / a limpo a incerteza dos dias”), a actualidade (não fosse o autor um atento jornalista), poetas de eleição e a própria poesia (“Enquanto mastigas as palavras / e lhes trituras as vértebras, / há versos que se alimentam / do teu íntimo.”), entre outros tantos temas como seja a descrição de objectos de que é exemplo Inventário dos meus pertences mais valiosos, o meu favorito neste livro. 

Uma das revelações que a leitura desta obra põe desde logo em evidência é o leitor de poesia que Sérgio Almeida é. Encontramos nestas páginas homenagens implícitas e explícitas a Manuel António Pina, Jorge Sousa Braga, Herberto Helder, Wislawa Szymborska, Manoel de Barros, Sylvia Plath, entre outros (franceses, como Jacques Prévert ou Boris Vian), numa convivência poética que sendo contemporânea não esconde a tempos um especial gosto por ambientes e vozes tradicionais (por vezes rurais) ou temas nada fáceis como é o caso de uma muito peculiar (e difícil) relação com o divino (“Ele não está no meio de nós”; “Um deus imóvel é um deus inútil”). Talvez por isso, também, o humor seja um dos tons mais reconhecíveis nestas linhas – e a chave de resolução de vários poemas –, proporcionando ao poeta a distância necessária que lhe permite abordar certos assuntos, e presente desde logo nos títulos (cf. Poema pombalino, por exemplo), o que mostra, por parte do autor, a aguda consciência como também queria Miroslav Holub de que a poesia também é um jogo (“pobre pombo que encontrei na repartição a saldar o imposto de circulação aérea”). 

Daí que Sérgio Almeida não esconda o seu apreço por jogos de palavras (A cerca da vida por “acerca da vida”; O deserto de Sara por “O deserto do Sahara”; Ceci n’est pas la vie por “Ceci n’est pas une pipe”; “O que se passa na Eternidade / fica na Eternidade”, um trocadilho com a expressão aplicada a Las Vegas), ou mesmo oximoros (“O passado já lá vem”), estratégias menos vezes associados à emoção do que à razão, com a qual o poeta estabelece o contracto de leitura com o leitor. 

Nada disto rouba o lirismo que caracteriza os poemas. Simplesmente, o autor prefere uma poesia de exemplos, de matriz biográfica, com a qual constrói uma persona que atravessa o quotidiano, presente e passado, numa visão de Mundo da qual não está ausente por vezes um leve tom escatológico que, não sendo o dominante no livro, garante a Sérgio Almeida um lugar “de quem faz da margem / o seu eixo”.

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