PARDAIS
Adília Lopes
Assírio & Alvim, Julho 2022
72 páginas
Cada livro da autora lê-se sempre com duas terríveis perguntas na cabeça: pode tanta inocência ocultar algum cinismo? Pode tanta simplicidade esconder ironia?
A verdade é que a poesia de Adília Lopes é reconhecível em qualquer lugar do mundo lusófono; segundo julgo saber, no Brasil, existe mesmo o adverbio “adilianamente”, o que de certo modo corrobora a minha suspeita de que Adília Lopes é a prima portuguesa que Paulo Leminski não conheceu.
Adília é tom e é persona. Diz quem priva com a autora que Adília “é mesmo assim”, tal como escreve. Os seus textos (muitos deles em prosa) são atravessados por uma candura, uma inocência e uma ingenuidade desarmantes, mostrando uma obsessão extrema pela descrição e pela narração de detalhes, não só como alguém que procura a verdade do Mundo mas como alguém que quer ter a certeza de que a mesma não só é transmitida ao leitor, como também correctamente apreendida por ele: “Outra coisa de que gosto em casa é de ver a luz da rua apagar-se no castiçal do piano que tenho na casa de estar. O castiçal é de metal, reflecte a luz da iluminação pública”. Assim, tudo explicito.
Esta obsessão explicativa está patente também, por exemplo, na assinatura que cada texto exibe do local e do dia exactos (o mês em numeração romana, o que não é despiciendo) onde o mesmo terá sido escrito, ou finalizado. Os poemas têm um cariz quase exclusivamente biográfico – desta vez encimados pela imagem conceptual pura, simples e livre de um pardal, como Adília – assumindo outras vezes a voz de raciocínios lógicos do tamanho de um aforismo ou de um slogan, não poucas vezes informados por temas religiosos ou ditados colhidos directamente da sabedoria popular.
Adília recorre frequentemente à
tradição, não apenas a literária (neste livro responde a versos de Cesário Verde, Fernando Pessoa e Gil
Vicente) mas também, e principalmente, à secular sabedoria oral do bairro
onde habita e onde aprecia viver, transmitida, imagina-se, de vizinho para vizinho,
de geração para geração. A persona
destes textos fala ao leitor num acento cândido, puro, desprovido de excessos,
gerindo em cada parágrafo o espaço em branco (ou seja, o silêncio) de modo a
convidar o leitor a parar, ver e reflectir, resultando este processo muitas vezes
em ironia, uma vez que desarma o leitor com a candura do que parece óbvio; podermos
ver o óbvio escrito num livro de poesia, parece-me ser o achado maior desta
poética.
Esse mesmo espanto por descobrir parece assistir à reprodução, na segunda parte do livro, de 12 desenhos da autora feitos com a mão esquerda em Maio de 2022, partindo do “Cogito, ergo sum” de René Descartes. Os desenhos são de péssima qualidade mas não é esse o ponto: a máxima “Penso, logo existo” (“Penso, portanto sou”) é escrita pela autora ao longo de uma semana e meia em sucessivas tentativas com a sua mão não dominante, acompanhada de um torvelinho gráfico, e o que se verifica é que a caligrafia não sofre qualquer melhoria, tentativa após tentativa, contudo representa para Adília um desafio diário, um jogo pessoal, a prova de que a autora está viva e continua viva, a demonstração de que pensa, logo existe, e isso parece ser suficiente. Viva, como um pardal.
Já na terceira página do livro, a autora havia feito publicar uma foto a
preto e branco de uma divisão da sua casa onde são visíveis inúmeros objectos
que bem podiam ser assunto de algum dos seus poemas, como se de um Cabinet de curiosités se tratasse – uma bela
imagem resumo do que constitui esta poética colecionada dia a dia, onde os
pardais do bairro passaram agora a ter também, com este livro, definitivamente o
seu lugar.
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