Andreia C. Faria
Tinta-da-China, Julho 2022
96 páginas
Como
o leitor já certamente notou, não constituem estas notas crítica literária mas somente
pequenas conversas sobre livros. Ou, se quisermos, breves notas sobre poéticas.
O aspecto que me parece mais característico da poesia de Andreia C. Faria – e que a torna, de entre as autoras novíssimas, a
mais próxima de Herberto Helder – é
o facto de ser, na essência, uma poética de imagens.
Imagens
de todo o tipo, naturalmente: imagens literais, imagens perceptuais mas,
sobretudo, imagens conceptuais, o que faz desta uma poesia de difícil compreensão,
dado que este tipo de imagens – que se constitui, como se sabe, de símbolos que
podem ser universais ou privados – é feita, quando falamos de poesia, de signos
frequentemente pessoais (atente-se ao caso de W.B. Yeats), o que por si só é passível de trazer dificuldades adicionais
ao leitor.
Esta
impressão de inacessibilidade que este género de poética transporta – porque
exige bastante mais do leitor no processo da leitura (“deixando em quem te lê
alguma coisa / florescer”, nota a poeta) – deverá, ao invés, ser tomada como um
desafio, um ponto de partida que não sendo de todo complexo no que às imagens
literais (“a ferrugem num portão / aberto em frente ao mar”) ou às imagens perceptuais
diz respeito (por exemplo, a sinestesia “a rouca violência de um pavio” ou o
símile “Nada rectifica a noite como andar de caravela pela insónia”), já quanto
às imagens conceptuais reveste-se de um maior grau de dificuldade no momento de
as tentar materializar (“o porte mudo e aromático de um coração”).
Mas
deveremos, enquanto leitores, tentar materializar um símbolo? Dirá o leitor (vindo
das ciências, por exemplo) que um coração não só não tem um porte mudo, como
não possui um aroma agradável; que aceitar a imagem de um coração proposto nestes
exactos termos é dar um salto de aceitação – uma suspensão de crença – que o
leitor de poesia pode não estar disposto a dar. Ora, na poesia de ímpeto expressionista
(e na poesia simbolista), a dita suspensão de crença funda-se na plena aceitação
à priori de que qualquer justaposição
de imagens – e por maioria de razão, de sons – que o poeta nos proporcione é
válida, e é a sua. Um símbolo é uma imagem que transporta conotações (por vezes
múltiplas) para dentro do poema.
Na
maior parte das vezes agreste, num processo que visa plasmar a inquietação e a inconformidade
da persona que fala nestes textos,
esse processo inicia-se este livro desde cedo pelo símbolo do cão recrutado
para título, não exactamente o cão-biológico mas o cão-comportamento, o
cão-adjectivo, transportador das inúmeras características que, do animal, são passíveis
de ser transferidas para o humano. A condição humana (e feminina) vista pelos olhos
da condição canina. Nesse sentido, a fruição dos versos que aqui se propõe
destina-se a ser efectivamente física, hiperbólica, feroz, múltipla sendo o
leitor convidado a percepcionar essa visão cumulativa de imagens que é a visão da
persona que fala nos poemas. “É a
quotidiana paz possível, / o modorrento real, absoluto”, escreve a autora. Num
tom elíptico e crestado, os poemas recrutam imagens do subconsciente de quem se
exprime (“Escrevo as coisas que das mãos / me caem, rachadas e celestiais.”),
através de uma linguagem inquieta, ricamente alusiva, marcada por uma dicção
deliberadamente agreste e de sinal negativo (cf, logo no primeiro poema, “canina”,
“devassa”, “lanhos”, “arroubo”, “ladra”, “indigesto”), linguagem essa que se
por instantes é passível de causar rejeição (por não ser agradável, e é essa
mesmo a intenção), aparece mesclada por tons de coloquialidade (“Come e dorme
com regalo, / pela tarde beberica”), o que tem como efeito final reaproximar o
leitor, e levá-lo com a oralidade que contém.
Curiosamente,
mais adiante na obra, a autora parece que se antecipa a esta visão e responde-nos,
leitores, com uma versão mais branda da sua voz: em “Mudar de luz”, os poemas
são mais curtos e desenvolvem-se através de uma sintaxe mais clara e menos
elíptica, não variando o tema significativamente; e na terceira parte, a dicção
procura deliberadamente a “Beleza suficiente” (título) em peças de prosa
poética onde a dicção é menos agreste. Porém, no conjunto da obra, esta é uma voz
que dá e tira, que afasta e aproxima, que atinge e afaga, recusando o apaziguamento,
deixando claro desde cedo que existe um avesso para o lado menos ferido da vida
(“Quem dera à linguagem a nobreza fria, / afundada, do excremento, / Ela existe
como coisa ferida”). O que faz de Andreia
C. Faria uma das vozes mais inconfundíveis da actual poesia portuguesa.
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