Jorge Gomes Miranda
Assírio & Alvim, Setembro de 2022
184 páginas
Não
é de todo novidade na escrita de Jorge
Gomes Miranda a utilização de máscaras, isto é, a escrita de poemas numa
voz que não é exactamente a sua, naquilo que se tornou um traço distintivo da
sua poética. Recordo-me vivamente do belíssimo livro “O Acidente”, editado
também pela Assírio & Alvim (e traduzido em Espanha), no qual através de
uma sequência de poemas cujo fio condutor desenhava uma narrativa eram os objectos
(“No poetry but in things”) que em monólogos dramáticos, falavam nos poemas.
Também
em “A última pedra” existem caracteristicamente vozes, uma multiplicidade de
vozes, masculinas e femininas, novos e velhos, a falar desde o poema. A questão
que se coloca ao leitor é a de saber se se tratam de vozes imaginadas (velhos e
crianças que nascem da imaginação do autor) ou vozes de pessoas que têm ou
tiveram uma existência real e com as quais o autor contactou e às quais pediu
emprestada a vida: velhos e crianças que surgem da experiência.
Este
processo nunca é simples porque é quase sempre híbrido. Imaginação e
experiência concorrem simultaneamente para o momento da escrita e se em “O que
nos Protege” ou “Requiem”, anteriores obras, o “trabalho de desvio, máscara,
personagem, voz alheia ao autor quase não está presente”, em “A última pedra”,
apesar de tudo, o jogo é misto.
Os
lugares que os poemas evocam são reconhecíveis: o cemitério, casas de repouso,
habitações, o espaço da família e do lar onde filhos, pais, mães, crianças, vidas
tristes (“Sem anjos da guarda ou ansiolíticos”) são trazidas pela mão da memória
(“Aqui poderíamos recordar / tranquilamente as brasas / do passado”), em rituais
fúnebres, despedidas, momentos de dor que acompanham a perda (“Certos dias
abrem feridas, / são nenhum bálsamo, / flores secas ao redor de / uma campa, /
no cemitério do coração.”). É um livro extensamente dedicado aos mortos de Jorge Gomes Miranda. Os seus mortos. Com
poemas caracteristicamente curtos (de género lírico e por vezes narrativo, a
maior parte das vezes monólogos interiores), quase sempre tecidos na fronteira fina
entre poesia e prosa. Uma escrita crua, austera, ética, exacta, de adjectivo
preciso, emoldurada pelo espaço branco do silêncio que rodeia a mancha gráfica do
poema, centrada no imo da página; poemas breves – a lembrar curtas-metragens – com
uma total ausência de pirotecnia verbal; poemas sentidos sem qualquer réstia de
sentimentalismo.
Num
certo sentido, esta é também uma poesia de objectos (cf. “Infância da poesia”)
e há poesia nesses objectos que ocorrem na vida das personagens onde a idade é
sinónimo de solidão, desamparo, afastamento, tristeza, amargura, lamento, dor
que elegia nenhuma poderá apaziguar (“contemplando tanta aceitação, grito”) mas
também disponibilidade, compreensão, ensinamento, consolação, memória,
afabilidade (“Mãos que passaram de avó / para mãe, e de mãe para filha.”), personagens
estas demasiado bem caracterizadas para serem completos desconhecidos – personagens
que percebe-se, cruzaram-se directa ou indirectamente com o autor.
A
poesia é assim “retrato da dor, / preparação para a morte.”; não esconde o seu
direito ao sofrimento, a autorização da dor em momentos essenciais ao futuro. Aqui
se diz: “Escrevo, recordo nomes / de amigos, lugares / tão preciosos como
fotografias”. A poesia tece-se na relação indizível entre as personagens e o
poeta, na vulnerabilidade que tantas vezes se cala mas que aqui se expõe, em
descrições de fragilidade que curiosamente são a sua força, a “euforia de um
verso claro”, revelando-se “agora na labareda / que a proximidade / da morte
alimenta.”
Lado
a lado com os velhos, há as crianças, símbolo da descoberta, da alegria
necessária para transpor a perda, para os que têm de continuar “o absurdo
quotidiano”. É justamente o equilíbrio entre o dito e o contido, a
característica maior da poesia de Jorge
Gomes Miranda, a finíssima linha onde se urdem os seus poemas. Onde não se
permitirá a mágoa.
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