“Uma mulher aparentemente viva” é um objecto curioso e corajoso. Composto por uma “Carta a mim mesma”, seguida de longos poemas, numerados de I a XI, é um livro em que o corpo principal da escrita vai sendo intercalado com monólogos em discurso directo, identificáveis pelo grafismo em itálico que, de certa forma, informam e comentam os poemas que o sujeito lírico escreve, aqui e ali num tom irónico.
Cláudia R. Sampaio nasceu em Lisboa em 1981. Poeta e pintora conta até ao momento com sete livros de poesia publicados. “Uma mulher aparentemente viva”, obra íntima e muito pessoal, proporciona-nos a leitura de textos que nos trazem, numa linguagem simbólica, momentos em que uma personagem feminina, cansada “das coisas visíveis”, ousa imaginar “ir contra as coisas”, “tentando ser mais do que aquilo que (...) parece”, num processo íntimo de descoberta, árduo, não sem obstáculos, mas persistente e de certa forma feliz, através do qual tenta descobrir e descobre o seu lugar no mundo, entre as coisas e as outras mulheres.
O discurso é contaminado por símbolos (“o chapéu magnífico”, por exemplo), passível de nos transportar para ambientes oníricos, surreais que, de resto, a autora pinta não apenas com palavras mas também com 6 desenhos que surgem reproduzidos no inicio do livro onde identificamos influências (Cruzeiro Seixas, Marc Chagall, Frida Khalo, por exemplo) que nos deixam “sorrindo com a estranheza”.
A estratégia usada pela autora de escrever a duas vozes é assaz interessante: em letra normal, o sujeito lírico apresenta-nos todo esse processo, doloroso, intenso, de forma objectiva, refreando os sentimentos, e a itálico, outra voz comenta esse processo. Na primeira, mais narrativa, são predominantes os tons de ternura, empatia, compaixão; sendo um tema passível de ser abordado com os sentimentos à flor da pele, é justo assinalar-se que a emoção é contida por uma racionalização do processo, onde identificamos, por exemplo, o cansaço de existir, a ameaça da desistência, dúvidas, hesitações, imobilismo, num processo de descoberta pessoal que deixa a nu a mais profunda solidão na qual o sujeito poético se redescobre, reinventando-se.
Na outra, a itálico, e com um tom por vezes irónico e humorístico, a autora ri-se (“Cambaleio um pouco por causa dos desníveis da vida”), se tal é possível, do seu próprio sofrimento, confidenciando com o leitor, antevendo reações do sujeito poético, adivinhando atitudes num processo de ironia cósmica, próprias de quem sabe de antemão o que irá acontecer, o que lhe permite ir onde a outra voz só iria ao preço do confessionalismo exacerbado (“Cada solidão tem as suas próprias impressões digitais”), tentando fazer do leitor cúmplice da comunicação e do sofrimento (“Caro leitor, pense nisto / Terá também, por certo, a sua própria solidão”).
Inicialmente isoladas, é curioso perceber como nos poemas finais as duas vozes se vão progressivamente mesclando em vários poemas, dialogando entre si, mostrando que quem fala é um e o mesmo sujeito lírico.
Os 11 quadros traçam uma narrativa de sobrevivência (“Se nada mudasse, por certo iria morrer”; “E se deixasse de respirar?”), num longo processo onde a transformação é uma questão de sobrevivência que encontra a solução em si própria (“Eu sou eu!”), com a força de um Adamastor. E há tempo para o Humanismo e para a empatia: “que bom é cair / porque normalmente não se pode cair em / nenhum lugar, / querem sempre um levantar / não entendem que é preciso cair, / é preciso estar junto ao chão / para se subir em verdade e ver fundo”. Nesse sentido, um dos momentos favoritos do discurso poético surge quando a voz transforma o tema do livro: a palavra “solidão” surge, por três vezes, fragmentada, em três linhas diferentes, silaba a silaba: “So / Li / Dão”.
Música. Melodia. A voz lírica já canta. Nesta poética
da identidade feminina, “a mulher ergueu-se”. Porque a voz lírica “decidiu
dar-se uma oportunidade / (…) estar atenta à luz”. Para que o mundo volte a
existir. A cores.
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