Rosa Alice Branco
Assírio & Alvim, Março de 2022
80 páginas
Konrad Lorenz, Prémio Nobel da Medicina
de 1973, zoólogo austríaco que entregou uma parte significativa da sua vida ao
estudo do comportamento animal, empresta as epígrafes aos poemas desta obra de Rosa Alice Branco que se desenvolve em
44 poemas. São textos que tratam da relação do homem com o cão, uma relação assimétrica
– de poder, por parte do dono que decide, dá ou castiga; fidelidade, por parte
do animal que agradece e está. Mas, antes disso, o assunto das primeiras oito,
nove peças recupera o homem do paleolítico, a tribo, os movimentos nómadas, a
fogueira onde se aquecia e cozinhava, e a relação com as outras espécies: a
aproximação do chacal e do lobo até, por fim, chegarmos à domesticação do cão, então
familiaris: “Quando o colectivo
oferece vantagens inegáveis / damos as mãos”.
Pode
dizer-se que cada poema se inicia com a antropologia de Lorenz para se desenvolver e terminar na sociologia de Rosa Alice Branco, um salto evidente
das coisas concretas para os conceitos abstractos. Assiste-se aqui e
acompanha-se um percurso que se terá iniciado na tribo à volta de cujo
acampamento os chacais rondavam, para muito rapidamente nos apercebermos
enquanto leitores de que, em boa verdade, os poemas nos estão a falar de
fluxos, preocupações e acontecimentos de tribos urbanas contemporâneas e que os
chacais, em particular, são metaforicamente outros; que ao mesmo tempo que
acompanhamos aquele processo de milénios através das epígrafes e do incipit de cada poema, a poeta muito diligentemente
nos transporta para a contemporaneidade: “Às vezes / pensamos saber quem nos
periga e ao fugirmos / caímos no laço do maior engodo. Falinhas mansas, /
palavrinhas doces”. É a outro sítio que os poemas querem chegar, da epígrafe à
epifania, nesse salto de milénios.
Com
o avançar na leitura veremos como os poemas se vão centrar na relação do homem
com o cão, evocando por exemplo, momentos que se prendem com a predação, o
processo de domesticação, a função de proteção, o acto de submissão, mas também
mais adiante, a obediência, a fidelidade, o acasalamento, a companhia, o treino,
a maternidade e a morte, assim como outros aspectos da relação entre as duas
espécies no que à aparente relação de poder do homem sobre o cão diz respeito –
ou quiçá, melhor, a relação de poder que o cão (que também domestica o homem)
tem sobre este – quer quando se consideram as duas partes envolvidas no sentido
literal (humano e cão), quer no sentido metafórico (entre humanos).
Torna-se
evidente o modo como a autora se delicia em inúmeros versos a assinalar o
paralelismo com ironia e coloquialidade. São relembradas imagens do “lobo
solitário” e de “alcateias de homens” como símbolo desses comportamentos. O
poema 16 é um excelente exemplo: dois cães (dois homens, se quisermos)
detestam-se cordialmente um ao outro (propõe a epigrafe de Lorenz). E remata Rosa Alice
Branco: “Mas é imperioso mostrar / que o prestigio não mascara a cobardia.
Alçam / as orelhas, os cantos da boca e rosnam surdamente. / Esgrimem flanco
contra flanco, rodam / em círculo como um ritual de iniciação e / farejam-se
anal e lentamente. Finda a cerimónia / afastam-se ufanos e altivos pela vitória
/ de tanta contenção.” O leitor sorri ao recordar-se de semelhante ritual na última
reunião da sua empresa.
Este
gosto pela ligação da poesia a outras disciplinas – Biologia, Arte, História,
Filosofia, outras – é o que de melhor a poesia contemporânea tem para oferecer.
Poemas com vários estratos de leitura, livros com estrutura, que não deixem os
poemas soltos mas acrescentem sentido e colem a obra. No livro em epígrafe, é
possível perceber (num estrato mais profundo) como esta colecção de poemas de Rosa Alice Branco arranca do tema do Instinto
para terminar na Razão, não sem que se verifiquem desvios ocasionais pela
Intuição e pela Emoção: “Se Lorenz dá sentido aos sons / que imitam o verso, é porque
o sigo como cão lupino”. Fica a certeza de que António Damásio haveria de
apreciar este livro.
Sem comentários:
Enviar um comentário