Raquel Nobre Guerra
Tinta-da-China, Março de 2022
152 páginas
Raquel Nobre Guerra nasceu em Lisboa em
1979, onde fez a Licenciatura e o Mestrado em Filosofia. Autora premiada
regressa à publicação após um interregno de alguns anos, com uma obra que confirma
a sua voz entre as poetas da sua geração.
Nos
textos que nos propõe, os primeiros versos partem frequentemente da oralidade –
são, em tom, coloquiais – desenvolvendo-se os poemas por rápidas associações de
imagens, num fluxo ansioso, resultando o poema numa escrita metonímica e
alusiva, a maior parte das vezes de género lírico (“pertenço ao que digo para
que a vida / (...) / não fique apenas em mim”) mas também dramático, em monólogo
interior (“vou gostando dos pensamentos que vou tendo”).
Este
processo é claramente assumido com uma vontade de escrita – como revela a peça “A
poesia é uma conversa a ter” (“Às vezes um evento de título mínimo / acende o
mundo”) – sempre contaminada de actos e factos quotidianos que se vão sucedendo
diante dos olhos (ou no pensamento) da poeta, assim se dê o caso de surgiram no
exacto momento em que se encontra a escrever. Existe nesta voz uma imensa disponibilidade
para capturar as coisas do mundo.
Precisamente
devido a este processo de associação, o resultado é uma escrita concentrada,
tensa, elíptica, cabendo ao leitor preencher (com a sua experiência e
imaginação) o salto lógico – frequentemente não explicito – entre as imagens
propostas, imagens essas que vão sendo sequenciadas por justaposição ao longo
do poema, e às quais o leitor surpreso reage mais vezes com o choque da
estranheza – e do esforço, acrescente-se – do que com o consolo da lógica. Essa
conexão entre versos cabe ao leitor, no exercício de ler o poema, fazer.
Pelo
facto de a dicção ser maioritariamente concreta (e reconhecível) pode parecer
que se trata de uma poesia simples. Não é. O que não deixa de ser curioso já
que a escolha das palavras (ainda que maioritariamente concreta, por ser uma
poesia de referentes) é passível de gerar uma experiência de leitura
abstractizante (por vezes até surrealista), seja pela frequente utilização de
figuras lexicais como o anacoluto (que desvia e acrescenta outro fio de discurso),
seja por uma muitas vezes bem-sucedida felicidade verbal (principalmente na
primeira parte do livro) que busca a estranheza e a novidade também no título
dos poemas (alguns dos quais verdadeiros achados, pelo efeito de suspensão que convocam
no leitor). Mas também pela procura de efeitos lúdicos: “há em todas as
civilizações uma filosofia / um dente enterrado na bochecha da lua”. É o gozo da
linguagem, a lembrar por vezes Miguel
Manso (e muitas vezes Frank O’Hara,
por “dar ao mundo o tom de conversação fácil.”).
Este
livro de poesia de Raquel Nobre Guerra
pela extensão de assuntos a que alude, seguramente que contém uma poética da
vida, ao coleccionar o que lhe é familiar, aparentemente não excluindo nada,
não sendo por isso estranho ver-se a palavra alegria – alegria de ver, alegria de descrever, alegria de estar e
de pertencer – presente no título de um livro que é composto por três ciclos de
canções (da manhã, da tarde e da noite), seguidos de oito poemas dedicados ao
pai da autora onde são predominantes tons de confiança, ousadia e resolução, quer
na voz do eu social (“o mundo oferece
coisas que não quero”) quer nos versos do eu lírico (“parece que toco com a palavra a beleza e tu / quase
pertences ao que digo neste instante.”). Um pequeníssimo senão deste leitor em concreto:
pareceu-me um livro longo. Do mesmo modo que aprecio num poema a economia e capacidade
de concisão, gosto de perceber que num livro de poesia existiu uma selecção de
entre os poemas produzidos pelo autor; um livro de poemas não deve ser um
arquivo do que o poeta escreveu num determinado período de tempo. Tão vasta
colecção de poemas, contudo, proporciona-nos a oportunidade de apanhar Raquel Nobre Guerra em flagrante de escrita
– colhendo e bebendo do mundo.
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