quarta-feira, maio 24, 2023

RAQUEL NOBRE GUERRA

 


DIVISÃO DA ALEGRIA

Raquel Nobre Guerra

Tinta-da-China, Março de 2022

152 páginas

 

Raquel Nobre Guerra nasceu em Lisboa em 1979, onde fez a Licenciatura e o Mestrado em Filosofia. Autora premiada regressa à publicação após um interregno de alguns anos, com uma obra que confirma a sua voz entre as poetas da sua geração.

 

Nos textos que nos propõe, os primeiros versos partem frequentemente da oralidade – são, em tom, coloquiais – desenvolvendo-se os poemas por rápidas associações de imagens, num fluxo ansioso, resultando o poema numa escrita metonímica e alusiva, a maior parte das vezes de género lírico (“pertenço ao que digo para que a vida / (...) / não fique apenas em mim”) mas também dramático, em monólogo interior (“vou gostando dos pensamentos que vou tendo”).

 

Este processo é claramente assumido com uma vontade de escrita – como revela a peça “A poesia é uma conversa a ter” (“Às vezes um evento de título mínimo / acende o mundo”) – sempre contaminada de actos e factos quotidianos que se vão sucedendo diante dos olhos (ou no pensamento) da poeta, assim se dê o caso de surgiram no exacto momento em que se encontra a escrever. Existe nesta voz uma imensa disponibilidade para capturar as coisas do mundo.

 

Precisamente devido a este processo de associação, o resultado é uma escrita concentrada, tensa, elíptica, cabendo ao leitor preencher (com a sua experiência e imaginação) o salto lógico – frequentemente não explicito – entre as imagens propostas, imagens essas que vão sendo sequenciadas por justaposição ao longo do poema, e às quais o leitor surpreso reage mais vezes com o choque da estranheza – e do esforço, acrescente-se – do que com o consolo da lógica. Essa conexão entre versos cabe ao leitor, no exercício de ler o poema, fazer.

 

Pelo facto de a dicção ser maioritariamente concreta (e reconhecível) pode parecer que se trata de uma poesia simples. Não é. O que não deixa de ser curioso já que a escolha das palavras (ainda que maioritariamente concreta, por ser uma poesia de referentes) é passível de gerar uma experiência de leitura abstractizante (por vezes até surrealista), seja pela frequente utilização de figuras lexicais como o anacoluto (que desvia e acrescenta outro fio de discurso), seja por uma muitas vezes bem-sucedida felicidade verbal (principalmente na primeira parte do livro) que busca a estranheza e a novidade também no título dos poemas (alguns dos quais verdadeiros achados, pelo efeito de suspensão que convocam no leitor). Mas também pela procura de efeitos lúdicos: “há em todas as civilizações uma filosofia / um dente enterrado na bochecha da lua”. É o gozo da linguagem, a lembrar por vezes Miguel Manso (e muitas vezes Frank O’Hara, por “dar ao mundo o tom de conversação fácil.”).

 

Este livro de poesia de Raquel Nobre Guerra pela extensão de assuntos a que alude, seguramente que contém uma poética da vida, ao coleccionar o que lhe é familiar, aparentemente não excluindo nada, não sendo por isso estranho ver-se a palavra alegria – alegria de ver, alegria de descrever, alegria de estar e de pertencer – presente no título de um livro que é composto por três ciclos de canções (da manhã, da tarde e da noite), seguidos de oito poemas dedicados ao pai da autora onde são predominantes tons de confiança, ousadia e resolução, quer na voz do eu social (“o mundo oferece coisas que não quero”) quer nos versos do eu lírico (“parece que toco com a palavra a beleza e tu / quase pertences ao que digo neste instante.”). Um pequeníssimo senão deste leitor em concreto: pareceu-me um livro longo. Do mesmo modo que aprecio num poema a economia e capacidade de concisão, gosto de perceber que num livro de poesia existiu uma selecção de entre os poemas produzidos pelo autor; um livro de poemas não deve ser um arquivo do que o poeta escreveu num determinado período de tempo. Tão vasta colecção de poemas, contudo, proporciona-nos a oportunidade de apanhar Raquel Nobre Guerra em flagrante de escrita – colhendo e bebendo do mundo.

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