quarta-feira, março 31, 2010

OSVALDO MANUEL SILVESTRE acerca de BALTAZAR LOPES

«Proponho um poema, que sempre achei muito belo, do cabo-verdiano Baltasar Lopes, um admirável «homem de letras»: «Saudade de Parafuso», assinado pelo pseudónimo Osvaldo Alcântara e reunido em Cântico da Manhã Futura. Porque, como nos melhores momentos do autor, é um poema de recorte «clássico» que contudo se dedica, em cenário funerário, à perseguição do momento fugaz do presente enunciado e anunciado pelo «Hoje» inicial. A perseguição do momento irrepetível decorre porém num cenário de repetição e esvaziamento do palpável e, desde logo, do corpóreo. O «Hoje» de que se fala é o do rito anual da visita ao cemitério no dia de finados; e a paisagem soturna e ventosa transforma corpos em silhuetas, assim como transforma o mundo visível numa alegoria barroca em fundo: um memento mori, não tanto por Parafuso mas pelos que o vão lembrar. Saudades, pois, «de Parafuso»? Ou de nós, do instante irrepetível em que se declina a nossa mortalidade? Seguramente. Mas, antes disso, saudades daquele momento prévio a toda a escrita, e a toda a representação, em que o instante simplesmente é, em todo o poder da sua presença; ou em que nós simplesmente somos o instante. Esse momento que é o grande tema da literatura moderna, ou melhor, da literatura quando moderna. Se é que tal coisa – uma literatura realmente moderna, uma literatura do instante – pode de facto existir.»


Baltasar Lopes da Silva (Caleijão, São Nicolau, 23 de Abril de 1907 — Lisboa, 28 de Maio de 1989) foi um escritor, poeta e linguista de Cabo Verde que escreveu em português e em crioulo. Foi, com Manuel Lopes e Jorge Barbosa, fundador da revista Claridade. Em alguns dos seus poemas usou o pseudónimo Osvaldo Alcântara. O seu romance mais conhecido é Chiquinho (1947). Escreveu também uma descrição dos crioulos de Cabo Verde, O Dialecto Crioulo de Cabo Verde, Lisboa, Imprensa Nacional, 1957.

SAUDADE DE PARAFUSO

Para Arnaldo França

Hoje, dia de finados, meu amigo, fomos ao cemitério
visitar este nosso companheiro que morreu.
Na paisagem soturna de ventania e nuvens baixas
eram quase banais as nossas duas silhuetas,
você, de um lado do coval anónimo,
empunhando a sua coroa funerária de rosa-querela,
eu do outro, apenas com o meu coração túrgido
de tristeza pelo destino irrevogável dos homens.
Só agora entendo bem o nosso gesto de amigos.
O que nos levou àquela campa foi a nossa necessidade
de encontrar uma ressonância mais pura,
decantada pela viagem sem itinerário,
de onde a gente regressa sempre pelo que ficou de nós,
como um perfume, caro e persistente, que nos persegue
mesmo depois de se ter esgotado o seu inebriamento imediato.



Osvaldo Manuel Silvestre é professor do Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Tem leccionado cadeiras nas licenciaturas em Línguas e Literaturas Modernas e Estudos Portugueses e Lusófonos, na área da teoria da Literatura, em que se doutorou, e ainda na licenciatura em Estudos Artísticos (Estética, Arte e Multimédia, Introdução aos Novos Média, Análise de Filmes). Lecciona ainda, no actual Departamento de Ciências da Vida da Universidade de Coimbra, uma cadeira opcional de Antropologia e Literatura, em co-regência com Luís Quintais. Na pós-graduação leccionou cadeiras de Teoria da Literatura e de Literatura de Língua Espanhola (um curso sobre «Os Mundos de Borges»). Dirigiu a licenciatura de Estudos Portugueses e Lusófonos entre 2006 e 2009. Publicou ensaios e livros sobre questões de teoria, estética, literaturas de língua portuguesa, literatura comparada, artes e crítica cultural. Foi o coordenador da parte portuguesa da revista de poesia Inimigo Rumor, nos números em que a revista funcionou em parceria entre Brasil e Portugal. Coordenou também a iniciativa, patrocinada pelo Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra e pelo teatro Académico de Gil Vicente, Os Livros Ardem Mal , recentemente premiada pela LER/Booktailors. Dirige a editora Angelus Novus.

domingo, março 28, 2010

JOÃO GESTA acerca de ADÍLIA LOPES

«A poeta que escolho é a Adília Lopes. Considero-a a mais singular e insubmissa voz feminina da poesia portuguesa contemporânea. O seu discurso poético é, ao mesmo tempo, inocente e subversivo, profundamente verdadeiro, apaixonadamente desconcertante.»


Comprei hoje
na Casa Batalha
uma camélia amarela
de pano
pendurei-a na parede
a tapar um prego
para não me esquecer
de me benzer


JOÃO GESTA nasceu em Matosinhos, em 1953. Escritor, programador cultural e membro do colectivo poético "Caixa Geral de Despojos". Organiza, desde Janeiro de 2002, o ciclo poético "Quintas de Leitura" do Teatro do Campo Alegre do Porto. Escreveu três livros de ficção e um de fricção, o melhor. Já traz outro no ventre. Continua desesperadamente à espera da Liberdade livre. Culpas no cartório: Embolia, Edicións Positivas (Espanha), 1993. Dança Com Lobbies, Felício & Cabral – Publicações, Lda., 1995. O Céu A Seu Dono, Edición Positivas (Espanha), 1997. Obra a três rins, de parceria com Daniel Maia e Pinto Rodrigues. Dorme Cá Hoje, Objecto Cardíaco, 2006. No ventre: A Chamuça Ardente, com prefácio de Demis Roussos.


Leia mais sobre Adília Lopes, no Poesia Ilimitada, aqui.




sexta-feira, março 26, 2010

ANA LUÍSA AMARAL acerca de EMILY DICKINSON


«Emily Dickinson é a poeta mais fascinante que conheço. O não ter praticamente publicado em vida autorizou sucessivas e revistas edições dos seus versos, espalhando a polémica entre críticos e organizadores. O ter incluído poemas em cartas, o ter falado da poesia como carta e trazido para o corpo das cartas o ritmo, a rima e a música da poesia fez com que dos seus textos uma poeta mais recente escrevesse: “
os poemas chamar-se-ão cartas e as cartas chamar-se-ão poemas”. A sua linguagem poética, ao mesmo tempo metafórica e elíptica, sincopada e oblíqua, sem muitas vezes concordância de formas verbais, nem respeito por plurais ou regras de gramática, deixou espaço a que dela se acentuasse o excessivo ofício com a gramática ou se falasse até de uma gramática própria. O seu uso recorrente de travessões, que fragmentam e questionam o verso, permitiu que deles se dissesse serem formas de dispersão da unidade discursiva, ou, sexualizados, uma espécie de hímen-hifen. Tudo isto me fascina em Emily Dickinson. E mais ainda: o ter falado de tudo, misturando Deus com ladrões, aranhas com vassouras, alma com vulcões, sonho com abelhas, gerânios, piscos e trevos; ou o ter examinado a morte e a vida, explorado o amor e o inferno, o êxtase, a mais pura alegria, o sofrimento, a misteriosa energia das coisas todas do universo. Ainda o tê-lo feito numa voz de mulher, aparentemente submissa, de facto poderosa. “Habito a Possibilidade - / Uma Casa mais bela do que a Prosa –“, escreveu. Depois disto, que melhor definição de poesia?»

My life closed twice before its close -
It yet remains to see
If Immortality unveil
A third event to me

So huge, so hopeless to conceive
As these that twice befell.
Parting is all we know of heaven,
And all we need of hell.


A minha vida fechou-se duas vezes antes de se fechar –
Mas fica por saber
Se a imortalidade me revela
Um evento maior

Tão largo, tão incrível de pensar
Como estes que sobre ela duas vezes tombaram.
Partir é tudo o que sabemos do céu,
Tudo o que do inferno se pode precisar.


§


To pile like thunder to its close
Then crumble grand away
While Everything created hid
This - would be Poetry -

Or Love - the two coeval come -
We both and neither prove -
Experience either and consume -
For None see God and live -




Crescendo de trovão até findar,
Depois o esboroar-se, grandioso,
Quando o Tudo criado era escondido
Isto – a Poesia -

Ou o Amor - os dois vêm coevos -
Ambos, nenhum provamos -
Um qualquer experimentamos e morremos -
Ninguém vê Deus e vive –



ANA LUÍSA AMARAL
nasceu em Lisboa, em 1956. Vive em Leça da Palmeira. Ensina Literatura Inglesa no Departamento de Estudos Anglo-Americanos da Faculdade de Letras do Porto. É doutorada em Literatura Norte-Americana com uma tese sobre Emily Dickinson. Autora de oito livros de poesia e dois livros infantis, está representada em diversas antologias portuguesas e estrangeiras e foi traduzida para várias línguas, como castelhano, inglês, francês, alemão, holandês, russo, búlgaro e croata.

Os poemas acima traduzidos por Ana Luísa Amaral são publicados pela primeira vez, em exclusivo, no Poesia Ilimitada.


Leia mais sobre Ana Luísa Amaral aqui.

quarta-feira, março 24, 2010

PEDRO EIRAS acerca de... (bom, o melhor mesmo é lerem!)

«Hesitei muito. Voltei a abrir os livros, em torno, sublinhados, anotados. Alguns, quase os vou sabendo de cor. Poderia repetir: Cesário, Pessanha, Herberto. Como de outras vezes. Ou Pero Meogo, Sá-Carneiro, Luiza, Franco Alexandre. Mas os dedos - eles sabem destas coisas - procuraram no escuro este exorcismo nocturno que talvez já ninguém saiba. E assim foi: copiei a reza obscura e magnífica. Não sei dizer mais nada sobre ela. A não ser - que entendo assim a poesia: tão próxima do medo.»


REZA DE BENZEDEIRAS NO NORTE DE PORTUGAL

Fulano, estás enfeitiçado,
inchado, virado ou mal-olhado?
Eu te desenfeitiço, desligo, talho
e desenlaço.
(Fazendo uma cruz no ar)
Eu talho o sopro do vento:
o ar de cima e o ar de baixo;
o ar do norte e o ar do sul;
o sopro do vento e o da chuva,
ar de cristão, de judeu ou de pagão.
Eu talho tudo.
Onde quer que sejas,
o mal da inveja,
ou a água do ventre.
Eu te talho e te degrado
para as ondas do Mar Coalhado
onde não canta galinha nem galo.
Para que o corpo
torne ao estado
como foi nascido e gerado
pelo poder de Deus e da Virgem Maria.



Pedro Eiras
nasceu em 1975. É Professor de Literatura Portuguesa na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Desde 2001, publicou obras de ficção (como Estiletes ou Os Três Desejos de Octávio C.), teatro (Um Forte Cheiro a Maçã, As Sombras, Um Punhado de Terra), poesia (Arrastar Tinta), crónica (Boomerang, Substâncias Perigosas), e ensaio (A Moral do Vento, A Lenta Volúpia de Cair, Tentações). Com o ensaio Esquecer Fausto, ganhou o Prémio PEN Clube Português de Ensaio em 2006. Tem peças de teatro traduzidas, publicadas, encenadas em diversos países: Portugal, França, Grécia, Eslováquia, Roménia, Brasil.


terça-feira, março 23, 2010

MANUELA RIBEIRO acerca de ÁLVARO DE CAMPOS

«Escolho este poema, porque sim. Porque sou eu este poema. Porque lhe pertenço. Porque "o que há em mim é sobretudo cansaço". Um profundo cansaço d' "Essas coisas todas/ Essas e o que faz falta nelas eternamente", quando, no final de cada instante de uma vida plena de realizações e fracassos, as palavras já custam a sair embargadas de silêncio. E o que fica é "Um supremíssimo cansaço./ Íssimo, íssimo, íssimo,/ Cansaço..."; "se puder ser,/ Ou até se não puder ser..."»



O QUE HÁ EM MIM É SOBRETUDO CANSAÇO

O que há em mim é sobretudo cansaço
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto alguém.
Essas coisas todas -
Essas e o que faz falta nelas eternamente -;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço.
Íssimo, íssimo, íssimo,
Cansaço...


Manuela Costa Ribeiro nasceu em 1963, na Póvoa de Varzim. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas – Estudos Portugueses e Franceses - pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, foi professora de Português e Francês na Escola Secundária Eça de Queirós, trabalhou como jornalista na SOPETE Rádio Mar e como correspondente no Jornal Público. Desde 1995 está ligada ao Pelouro da Cultura da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, responsável pelo Gabinete de Projectos Sócio-Culturais. É Co-organizadora do evento literário Correntes d’ Escritas - Encontro de Escritores de Expressão Ibérica e Co-coordenadora da Revista Correntes d’ Escritas. Publicou o seu primeiro livro, Cego do Maio Anjo da Salvação, na meiosdarte, em Dezembro de 2005. Em Novembro de 2006 publicou o seu segundo livro, O Catitinha, na editora Campo das Letras.





segunda-feira, março 22, 2010

LUÍS MAFFEI acerca de GASTÃO CRUZ


«Um poema especial: três estrofes, doze decassílabos e uma espécie de paralelismo entre os primeiros e os últimos versos. No poema, “nada” é coisa alguma, e “nada” é um pós-morte que não interessa à poesia de Gastão Cruz – ou interessa na medida da sua angustiante impossibilidade. Camões, presença não rara em Gastão, é o poeta que ousou fazer do amor o grande fito do humano, e morreu assassinado/ suicidado por uma penosa “espada”, amorosa e não. Há magistralidade na obra gastoniana, não por qualquer ensinamento que pretenda conter, mas, pelo contrário, em virtude de sua sábia humildade: “Não estamos”, poema inclusive, “preparados para nada/ certamente que não para” excessivas e pretensiosas verdades.»


DENTRO DA VIDA

Não estamos preparados para nada:
certamente que não para viver
Dentro da vida vamos escolher
o erro certo ou a certeza errada

Que nos redime dessa magoada
agitação do amor em que prazer
nem sempre é o que fica de querer
ser o amador e ser a coisa amada?

Porque ninguém nos salva de não ser
também de ser já nada nos resgata
Não estamos preparados para o nada:
certamente que não para morrer



Luis Maffei (Brasília, 16 de Fevereiro de 1974) é Professor de Literatura Portuguesa do Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense. Doutorou-se em 2007 pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com a tese “Do mundo de Herberto Helder”. Como poeta, publicou "A" (Rio de Janeiro: Oficina Raquel), em 2006, "Telefunken" (Rio de Janeiro: Oficina Raquel), em 2008 – a edição portuguesa deste livro foi lançada em 2009 pela Deriva – e lança, no próximo mês de abril, "38 círculos" (Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2010). Como músico, lançou, em 2004, o disco "na mesma situação de blake", em parceria com Marcelo Gargaglione. Coordena, para a editora Oficina Raquel, a série "Portugal, 0", dedicada à novíssima literatura portuguesa, responsável pelas antologias brasileiras das obras de Manuel de Freitas, Rui Pires Cabral, Luís Quintais, Pedro Eiras e valter hugo mãe. Tem textos publicados em diversos periódicos de literatura, como as revistas Gragoatá, Metamorfoses, Relâmpago e Telhados de Vidro.



domingo, março 21, 2010

ONÉSIMO TEOTÓNIO DE ALMEIDA acerca de EMANUEL FÉLIX

«Escolhi o poema 'As raparigas lá de casa', do meu falecido amigo, o poeta Emanuel Félix, que ainda há dias o Eugénio Lisboa recitava numa entrevista na Antena-1. O Emanuel é um grande poeta mas, porque publicou quase só na ilha (hoje tem um livro traduzido para inglês - 'The Possible Journey', tradução de John M. Kinsella, 2002), não é devidamente conhecido no Rectângulo


Emanuel Félix nasceu e faleceu em Angra do Heroísmo (24-10-1936 / 14-2-2004). Poeta, ensaísta, autor de contos e crónicas, crítico literário e de artes plásticas, foi considerado o introdutor do concretismo poético em Portugal, que cedo rejeitou, tendo passado pela experiência surrealista. Fundou e foi co-director da revista Gávea (1958). Foi co-director da revista Atlântida. Iniciou os seus estudos nos Açores, tendo, porém, feito quase toda a sua preparação técnico-profissional no estrangeiro, designadamente no Instituto Francês de Restauro de Obras de Arte (Paris), na Escola Superior de Belas-Artes de Anderlecht e na Universidade Católica de Lovaina, onde se especializou no Laboratório de Estudo de Obras de Arte por Métodos Científicos do Instituto Superior de Arqueologia e História da Arte da mesma Universidade. Os seus principais livros de poesia são o 'Vendedor de Bichos', Lisboa, 1965; 'Seis Nomes de Mulher', Angra do Heroísmo, 1985; 'O Instante Suspenso', Angra do Heroísmo, 1992; 'A Viagem Possível', Lisboa, 1993 e 'Habitação das Chuvas', Angra do Heroísmo, 1997, onde se inclui o poema "As raparigas lá de casa".


AS RAPARIGAS LÁ DE CASA

Como eu amei as raparigas lá de casa

discretas fabricantes da penumbra
guardavam o meu sono como se guardassem
o meu sonho
repetiam comigo as primeiras palavras
como se repetissem os meus versos
povoavam o silêncio da casa
anulando o chão os pés as portas por onde
saíam
deixando sempre um rastro de hortelã
traziam a manhã
cada manhã
o cheiro do pão fresco da humidade da terra
do leite acabado de ordenhar

(se voltassem a passar todas juntas agora
veríeis como ficava no ar o odor doce e materno
das manadas quando passam)

aproximavam-se as raparigas lá de casa
e eu escutava a inquieta maresia
dos seus corpos
umas vezes duros e frios como seixos
outras vezes tépidos como o interior dos frutos
no outono
penteavam-me
e as suas mãos eram leves e frescas como as folhas
na primavera

não me lembro da cor dos olhos quando olhava
os olhos das raparigas lá de casa
mas sei que era neles que se acendia
o sol
ou se agitava a superfície dos lagos
do jardim com lagos a que me levavam de mãos dadas
as raparigas lá de casa
que tinham namorados e com eles
traíam
a nossa indefinível cumplicidade

eu perdoava sempre e ainda agora perdoo
às raparigas lá de casa
porque sabia e sei que apenas o faziam
por ser esse o lado mau de sua inexplicável bondade
o vício da virtude da sua imensa ternura
da ternura inefável do meu primeiro amor
do meu amor pelas raparigas lá de casa



Onésimo Teotónio Almeida nasceu no Pico da Pedra, S. Miguel, Açores, no dia 18 de Dezembro de 1946. Professor Catedrático no Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros da Brown University, Providence, Rhode Island, EUA, de que foi director de 1991-2003. Lecciona na Brown desde 1975. Doutorado em Filosofia pela Brown University (1980), é Fellow do Wayland Collegium for Liberal Learning, um Instituto de Estudos Interdisciplinares na Brown University, onde lecciona uma cadeira sobre Valores e Mundividências. Publicou contos, teatro, crónicas, ensaios e prosemas. Entre as suas obras mais conhecidas encontram-se os livros "(Sapa)teia Americana" (1ª ed. 1983; 2ª ed. 2000, Lisboa, Salamandra), "No Seio Desse Amargo Mar" (Lisboa, Salamandra, 1991), "Que nome é esse, ó Nézimo? – E outros advérbios de dúvida" (Lisboa, Salamandra, 1994), "Rio Atlântico" (Lisboa, Salamandra, 1997), "Viagens na Minha Era" (Lisboa, Temas e Debates, 2001) e "Livro-me do Desassossego" (Lisboa, Temas e Debates, 2006). Fundou e dirige a editora Gávea-Brown. Desde 1979 mantém um programa sócio-cultural no Portuguese Channel, da Whaling City Cable-TV, de New Bedford, Massachusetts.


Leia mais sobre Onésimo Teotónio de Almeida, aqui.

sexta-feira, março 19, 2010

RUI MANUEL AMARAL acerca de RUSSELL EDSON

«'Outono' não é exactamente um poema.», observa Rui Manuel Amaral. «Também não é propriamente um conto curto. É algo que fica a meio caminho entre um género e outro. Ou que, de certa forma, parece combinar os dois. Os estudiosos chamam-lhe 'prosa poética'. Uma espécie de ornitorrinco literário. É justamente essa ambiguidade, essa condição de coisa escorregadia, desarrumada e difícil de classificar que me apaixona na grande criação literária. A obra de Russell Edson é um dos melhores exemplos disso mesmo: uma poderosa afirmação de liberdade, de negação de categorias e fronteiras. E este conto-poema-ou-o-que-lhe-queiram-chamar é uma obra-prima desse género singular: não é poesia, não é prosa, é grande literatura.»
THE FALL

There was a man who found two leaves and came indoors holding them out saying to his parents that he was a tree.

To which they said then go into the yard and do not grow in the living-room as your roots may ruin the carpet.

He said I was fooling I am not a tree and he dropped his leaves.

But his parents said look it is fall.


§


O poema 'The Fall', do livro 'What A Man Can See' (1969), foi traduzido por José Alberto Oliveira e publicado em 'O Túnel', Assírio & Alvim, 2002. Russell Edson (EUA, 1935) é autor de vários livros de poesia, além de obras de ficção e peças de teatro. Leia um extracto da introdução de José Alberto Oliveira a "O Túnel", no site da Assírio & Alvim.


§


OUTONO

Uma vez um homem encontrou duas folhas e entrou em casa segurando-as com os braços esticados dizendo aos pais que era uma árvore.

Ao que eles disseram então vai para o pátio e não cresças na sala pois as tuas raízes podem estragar a carpete.

Ele disse eu estava a brincar não sou uma árvore e deixou cair as folhas.

Mas os pais disseram olha é outono.




Rui Manuel Amaral nasceu no Porto, em 1973, cidade onde vive. Autor de 'Caravana', livro de contos, publicado pela editora Angelus Novus, em 2008. Foi fundador da 'Águas Furtadas, Revista de Literatura, Música e Artes Visuais' e seu coordenador literário entre os números 7 e 10. Está representado em diversas antologias dedicadas ao conto breve, editadas em Portugal e no Brasil. Tem colaborações dispersas por múltiplas revistas literárias. É autor de vários livros sobre história oral e tradições populares da cidade do Porto. É co-autor com Cristina Marti do blogue 'Dias Felizes'.

Leia mais sobre Rui Manuel Amaral, aqui.


terça-feira, março 16, 2010

MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA acerca de W.B. YEATS


«William Butler Yeats é um poeta de quem gosto absolutamente de tudo o que li», afirma Maria do Rosário Pedreira ao Poesia Ilimitada. «Basicamente, é considerado 'o último romântico', eu gosto dos românticos, que o influenciaram, mas gosto muito mais deste último romântico, que é se calhar mais directo e menos rebuscado que os ditos românticos (Shelley, Keats…); e, apesar do classicismo da forma, é obviamente um poeta mais moderno (também porque já conviveu com os poetas ditos modernistas, como o Eliot ou o Pound). Mas não sei bem explicar porque gosto tanto dos seus poemas. Admiro, contudo, a sua fidelidade – seja à mulher que sempre amou (Maud Gonne, uma nacionalista, que pediu não sei quantas vezes em casamento), seja ao nacionalismo irlandês (se não tivesse um lado político, talvez não lhe tivessem atribuído o Nobel). Este é o poema dele de que mais gosto (e que recito de cor de quando em quando, por não ter jeito nenhum para cantar).»



WHEN YOU ARE OLD
(1893)

When you are old and grey and full of sleep,
And nodding by the fire, take down this book,
And slowly read, and dream of the soft look
Your eyes had once, and of their shadows deep;

How many loved your moments of glad grace,
And loved your beauty with love false or true,
But one man loved the pilgrim soul in you,
And loved the sorrows of your changing face;

And bending down beside the glowing bars,
Murmur, a little sadly, how Love fled
And paced upon the mountains overhead
And hid his face amid a crowd of stars.


§

José Agostinho Baptista publicou uma versão deste poema em 1996, na Assirio & Alvim. Com a devida vénia:

§


QUANDO FORES VELHA

Quando fores velha, grisalha, vencida pelo sono,
Dormitando junto à lareira, toma este livro,
Lê-o devagar, e sonha com o doce olhar
Que outrora tiveram teus olhos, e com as suas sombras profundas;

Muitos amaram os momentos de teu alegre encanto,
Muitos amaram essa beleza com falso ou sincero amor,
Mas apenas um homem amou tua alma peregrina,
E amou as mágoas do teu rosto que mudava;

Inclinada sobre o ferro incandescente,
Murmura, com alguma tristeza, como o Amor te abandonou
E em largos passos galgou as montanhas
Escondendo o rosto numa imensidão de estrelas.



Maria do Rosário Pedreira
nasceu em Lisboa, em 1959. Licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas, na variante de Estudos Franceses e Ingleses, pela Universidade Clássica de Lisboa (1981). Possui o curso de Língua e Cultura do Instituto Italiano de Cultura em Portugal, tendo sido bolseira do governo italiano. Frequentou durante quatro anos o Goethe Institut, e foi professora do Ensino Básico. Trabalhou como coordenadora dos serviços editoriais das editoras Gradiva, Temas e Debates e QuidNovi. Como escritora, tem publicados vários livros de ficção, poesia, ensaio, crónicas e literatura juvenil. No início de 2010, assumiu funções no Grupo editorial Leya.


Leia mais sobre Maria do Rosário Pedreira no Poesia & Lda,
aqui.

Leia mais sobre W. B. Yeats no Poesia & Lda,
aqui e aqui.

domingo, março 14, 2010

PEDRO PAIXÃO acerca de LUÍS DE CAMÕES


«O que mais gosto neste poema», diz
Pedro Paixão ao Poesia Ilimitada, «é o que mais aprecio em qualquer poema e na literatura em geral: conjuga sublimemente a verdade com a beleza. Todos os grandes poemas e canções de amor, de que este é um excelente exemplo, são tristes e tingidos de melancolia, porque o amor promete o que não pode: durar eternamente.»



Quem ora soubesse
Onde o Amor nasce,
Que o semeasse!


De Amor e seus danos
Me fiz lavrador;
Semeava Amor
E colhia enganos;
Não vi, em meus anos,
Homem que apanhasse
O que semeasse.


Vi terra florida
De lindos abrolhos,
Lindos pera os olhos,
Duros pera a vida;
Mas a rês perdida
Que tal erva pasce
Em forte hora nasce.


Com tanto perdi,
Trabalhava em vão:
Se semeei grão,
Grã dor colhi.
Amor nunca vi
Que muito durasse,
Que não magoasse.



Pedro Paixão
nasceu em Lisboa em 1956. Estudou em Lisboa, Lovaina e Heidelberga. Doutorou-se aos 29 anos. Foi co-fundador do jornal O Independente. Fundou, com Miguel Esteves Cardoso, a empresa de publicidade Massa Cinzenta. Publicou vinte livros de ficção e dois álbuns de fotografia. Escreveu dois textos para teatro e um para ópera. Não é membro de qualquer associação, clube, partido ou igreja. Nunca votou. Praticou Karate Do. Nada no mar quase todos os meses do ano. Tem um filho. É casado pela quarta vez. Vive em Santo António do Estoril.

sexta-feira, março 12, 2010

INÊS LOURENÇO acerca de RICARDO REIS

«Pese embora a minha grande admiração pela escrita de poetas de outras línguas», refere Inês Lourenço ao Poesia Ilimitada, «continuo a achar que Fernando Pessoa é um caso à parte em qualquer literatura. No poema «Autopsicografia», ele tira logo o tapete às interpretações mais ou menos impressionistas e biográficas do fazer poético, revelando o lado ficcional da escrita e a prevalência do sujeito poético ou eu-lírico, sobre o sujeito biográfico. Isto foi uma enorme inovação, inserida no Modernismo, de que muito boa gente, ainda hoje, não tomou consciência. E, quem não tomou consciência disso, nada percebe da poesia actual. Muito mais poderia acrescentar sobre heteronímia ou o «drama-em-gente»; mas isso já está sobejamente descrito e estudado. Como poema preferido, lembro-me de uma ode do heterónimo Ricardo Reis que muito aprecio.»




Não só quem nos odeia ou nos inveja
Nos limita e oprime; quem nos ama
Não menos nos limita.
Que os deuses me concedam que, despido
De afectos, tenha a fria liberdade
Dos píncaros sem nada.
Quem quer pouco, tem tudo; quem quer nada
É livre; quem não tem, e não deseja,
Homem, é igual aos deuses.



Inês Lourenço nasceu no Porto em 1942. É licenciada em Línguas e Literaturas Modernas (Estudos Portugueses) pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Publicou diversos livros de poesia entre os quais "Os Solistas", "Um Quarto com Cidades ao Fundo – poesia reunida (1980-2000)", "A Enganosa Respiração da Manhã", "Logros Consentidos", "Disfunção lírica", entre outros. Coordenou e editou desde 1987, os Cadernos de Poesia – Hífen, com 13 números editados, publicação de carácter inter-geracional, em que participaram com colaborações inéditas, grande parte dos poetas portugueses actuais, bem como poetas de outras línguas. É a autora do blogue "Logros Consentidos".


Leia mais no Poesia Ilimitada sobre Inês Lourenço, aqui.




terça-feira, março 09, 2010

RICHARD ZIMLER acerca de WALT WHITMAN e EDGAR ALLAN POE


«A poesia de Poe», diz Richard Zimler ao Poesia Ilimitada, «demonstra um ritmo extraordinário, às vezes frenético, e as suas rimas tornam os seus versos relativamente fáceis de memorizar. A isso se deve, em grande parte, a sua popularidade. A obsessão de Poe pela morte e as profundas saudades deixadas pelo desaparecimento de pessoas amadas traduzem-se num estilo extremamente dramático e, às vezes, melancólico. A sua poesia marcou a minha adolescência. Mais tarde, no fim do liceu, descobri Walt Whitman. Embora também seja Americano e também da mesma época (século XIX), Whitman é muito diferente de Poe. Por exemplo, utiliza poucas rimas e os seus ritmos são, em geral, mais moderados e, às vezes, invulgares. É por excelência o poeta do corpo, das sensações, da beleza e da benção dos nossos sentidos. É também um poeta de dualidades. Por exemplo, embora seja um poeta muito ligado à terra, à geografia e à paisagem, também evidencia um misticismo esplendoroso. Whitman une corpo e alma nos seus versos, criando assim uma espiritualidade em que não há distinção entre sensações físicas e mentais. Serviu como enfermeiro na guerra civil norte-americana e a sua poesia está marcada pela tristeza e pelo sentimento de solidariedade provocadas por esta experiência. Os meus poemas favoritos de Poe são "O Corvo" e "Os Sinos". De Whitman, "Canto de Mim Mesmo".»

O CORVO
(tradução de Fernando Pessoa)


Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais
«Uma visita», eu me disse, «está batendo a meus umbrais.
É só isso e nada mais.»

Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão) a amada, hoje entre hostes celestiais —
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!

Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundindo força, eu ia repetindo,
«É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isso e nada mais».

E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
«Senhor», eu disse, «ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi...» E abri largos, franquendo-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.

A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais —
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isto só e nada mais.

Para dentro estão volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
«Por certo», disse eu, «aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais.»
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
«É o vento, e nada mais.»

Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais.
Foi, pousou, e nada mais.

E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
«Tens o aspecto tosquiado», disse eu, «mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.»
Disse-me o corvo, «Nunca mais».

Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos seus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome «Nunca mais».

Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, «Amigo, sonhos — mortais
Todos — todos lá se foram. Amanhã também te vais».
Disse o corvo, «Nunca mais».

A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
«Por certo», disse eu, «são estas vozes usuais.
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais
Era este «Nunca mais».

Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele «Nunca mais».

Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sombras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sombras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!

Fez-me então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
«Maldito!», a mim disse, «deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!»
Disse o corvo, «Nunca mais».

«Profeta», disse eu, «profeta — ou demónio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais,
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!»
Disse o corvo, «Nunca mais».

«Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!, eu disse. «Parte!
Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!»
Disse o corvo, «Nunca mais».

E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha dor de um demónio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão mais e mais,
E a minh'alma dessa sombra, que no chão há mais e mais,
Libertar-se-á... nunca mais!




Richard Zimler nasceu em Roslyn Heights, um subúrbio de Nova Iorque, em 1956. Tem um Bacharelato em Religião Comparada pela Duke University (1977) e um Mestrado em Jornalismo pela Stanford University (1982), tendo trabalhado 8 anos como jornalista na área de São Francisco. Em 1990, vem viver para o Porto, onde ensina Jornalismo desde há 16 anos. Publicou inúmeros romances, entre eles, "O Último Cabalista de Lisboa", "O Guardião da Aurora", "A Sétima Porta" e "Os Anagramas de Varsóvia", entre outros. É crítico literário do L.A. Times e do San Francisco Chronicle.


segunda-feira, março 01, 2010

JOAQUIM MANUEL MAGALHÃES

(para Joaquim Manuel Magalhães)

Atónito.

É como me sinto depois de ter terminado a leitura do último livro de Joaquim Manuel Magalhães,Um Toldo Vermelho” (Relógio d’Água, Lisboa, 2010), com o qual o poeta afirma excluir e substituir toda a sua obra poética anterior. Nesse volume, que passa assim a constituir a verdadeira obra completa do Autor, - a única que a partir de agora reconhece como sua, - são escassas e esparsas as semelhanças com os poemas que conhecíamos de "Consequência do lugar" (Relógio d'Água, 2001), "Os dias, pequenos charcos" (Presença, 1981), “Segredos, sebes, aluviões” (Presença, 1985), “Uma luz com um toldo vermelho” (Presença, 1990), “A poeira levada pelo vento” (Presença, 1993) ou, mesmo, “Alta noite em alta fraga” (Relógio d'Água, 2001). Quando se esperava (??) que o Autor republicasse a sua obra completa num só volume com inevitáveis revisões próprias de uma releitura, ou em alternativa, aproximasse os 4 livros (do meio) publicados pela Presença, eis a surpresa completa.

Em certos casos, o que sobra desses livros são somente cortinas, títulos, certas dedicatórias. A parte pelo todo, portanto, a metonímia suprema. Releve-se que o Autor não apresenta este como sendo um livro complementar à sua obra, uma leitura por escrito da mesma, uma súmula última por agora, mas como uma substituição. E tratam-se, na verdade, na esmagadora maioria dos casos, de poemas completamente novos onde o tom mais lirico, realista, narrativo que lhe conhecíamos, dá lugar a um registo sintático pedregoso, uma escrita sabotada e minimal, com um léxico riquíssimo, numa toada por vezes abstracta (a espaços até barroca), significativamante diversa da voz a que nos tinha habituado enquanto leitores. Bom, não exactamente da voz: os sinais de desalento e desconforto social permanecem, e parecem mesmo exacerbar-se fruto da economia, da síntese e da contenção levadas a cabo. A poesia, porém, é que passa a existir agora muito mais na tensão frásica e vocabular entre os versos (que, de tão coevos, optam por seguir o acordo ortográfico), do que na toada prosaica a que nos havia acostumado. Trata-se do mesmo nome, claro, Joaquim Manuel Magalhães, mas é outra a escrita: outro o poeta.

Uma coisa parece-me desde já, ser verdade: para o bem ou para o mal, estamos perante o happening poético do ano. Não se trata aqui de alguém que escreveu uma obra nova sob pseudónimo ou heterónimo. Trata-se de, em nome do mesmo nome, ser outra coisa, muito diversa, reescrevendo tudo quando havia publicado até então, mantendo somente o pilar da estrutura - como escreve Rui Lage no seu primeiro comentário a este post, - o esqueleto. Daí que a pergunta óbvia surja célere: o que pretende Joaquim Manuel Magalhães com isto? Reescrever a sua obra contra alguém? Contra a crítica, que o espartilhou num rótulo que pretende agora rejeitar? Contra os epígonos que se seguiram, dos quais se pretende libertar? Ou contra si próprio, contra a sua própria obra?

É que esta opção não deixa lugar para meios termos: este seu gesto de vanguarda, como há muito tempo não se via na poesia portuguesa - o reescrever de uma Obra completa (!!) sob o signo da alteridade, - ou é próprio de um “louco” que pretende destruir a sua obra, ou é fruto de um “génio”, altamente criativo. O tempo, como sempre, o dirá. Por agora, não há como folhear o livro com os próprios olhos. Será que estéticamente esta escrita funciona tão bem como a primeira? Ou, dirão outros, que importância tem a estética quando se fala de poesia?

De uma forma ou de outra, estamos perante uma súmula absolutamente inesperada - mesmo se vinda de J.M.M., - onde o poeta, repito, rasura quase por completo o seu programa do “regresso ao real” em formato prosaico e narrativo, presenteando-nos agora com uma obra bem mais hermética, que rejeita tutelas posteriores (deixando assim "orfã" uma geração inteira para quem era o guru), obra essa sobre a qual paira agora uma revisitada aura herbertiana.

Não deixa de ser irónico que numa altura em que até Gastão Cruz se havia aproximado dos encantos do prosaismo (mas com qualidades), eis que Joaquim Manuel Magalhães surge com um novo programa, revisitando territórios mais ao gosto da Poesia 61. Isto porque me parecem agora poemas que trabalham muito mais sobre a matéria da linguagem (tendo como ponto de partida a linguagem de que eram feitos os primeiros), do que directamente sobre a matéria do real (tendo como ponto de partida as coisas do mundo que os haviam despoletado).

Quais eram as chances de se prever isto?


§


«(...)
Melhor seria que não me lessem nunca
os que por costume lêem poesia.
Muito além deles conseguir falar
ao que chega a casa e prefere o álcool,
a música de acaso, a sombra de alguém
com o silêncio das situações ajustadas.

Não ser lido por quem lê. Somente
pelos que procuram qualquer coisa
rugosa e rápida a caminho de uma revista
onde fotografaram todo o ludíbrio da felicidade.
Que um poema meu lhes pudesse entregar.
ademais da morte,
um alívio igual ao de atirar os sapatos
que tanto apertam os pés desencaminhados.
(...)»

10ª e 11ª estrofes de "Sangramento", 3º poema de "Alta Noite em Alta Fraga" (2001)



»(...)
Melhor não me lesse
quem por dever.
Conseguisse a adesão
do acaso. Lagar,
um ludíbrio.

Oferta de alívio, o atacador
solta o sapato desencaminhado.
E entretém em inferior engenho
o tédio prévio ao vídeo
e ao embaraço.
(...)»

4ª e 5ª estrofes do 4º poema de "Alta Noite em Alta Fraga", último livro de "Um Toldo Vermelho" (2010)


§§


Poucas vezes a beleza terá sido tanta
como no lustro preto dos sacos de lixo
à porta dos hotéis, dos armazéns, das casas de comida
nas mais pequenas horas da noite em Londres.
Estão amontoados fechando o esterco,
os lençóis com sangue, os restos apodrecidos,
adesivos negros que parecem afagos.
Os homens ao lançá-los nas fornalhas
são erguidos a imaginações malditas,
à feroz acção de deuses nos vulcões,
ao odor sacrílego de alquimistas mortos.
Ir na luz eléctrica e ver esses maços de treva,
essa cor quase molhada dos plásticos
a parecer verniz, a parecer chamar-nos,
a dar-nos o sebo como se fosse a arte,
tem um fervor que finda o pequeno mal, a vida.

1º poema de "Logros", segunda parte de "Vestígios" (1977), livro incluído em "Consequência do Lugar" (2001).


*

Recolhe o júbilo dos invólucros de látex.
Na sujidade
a fita adesiva um afago.

Bolça-os à fornalha
nauseabunda,
doma o clamor bonançoso,
incinera.

Cadinho hermético,
operário do soturno.

6º poema de "Consequência do Lugar", segundo livro de "Um Toldo Vermelho" (2010)


§§


Conta-se que, a Giacometti era necessário esconder as esculturas em que ia trabalhando sob pena de transformar as esguias figuras humanas que urdia numa fina haste metálica, instável e quebradiça, quase já sem qualquer figuração discernível, tal era a sua obcessão lapidativa por não dar nunca a obra por terminada.

Joaquim Manuel Magalhães terá partido, parece certo, das versões que conheciamos para as trabalhar e sintetizar e exaurir nos poemas mais reduzidos e condensados que nos apresenta agora. Porém, por paradoxal que pareça, o Autor parece por vezes escrevê-los a partir da memória que guarda da situação que os originou, porque o que existe em comum com a versão primeva - e note-se que nem todos os poemas foram trabalhados, muitos foram pura e simplesmente abandonados, - são apenas dois ou três substantivos fortes, uma ou duas ideias chave, às quais o Autor se agarra e tenta - e a maior parte das vezes consegue, - eliminar qualquer réstia de acção ou movimento ou circunstancialidade, delapidando-as do seu teor prosaico e narrativo, fixando-as no tempo e tornando-as tanto quanto possivel estáticas e herméticas (quem faz isto muito bem é Gil de Carvalho), como se nesta sua obra completa, mais do que salvar poemas antigos, o Autor tentasse salvar a memória daquilo que informou a escrita de alguns deles: um gesto, o pequeno acontecimento, um amor.

Nesse sentido, e também porque se trata de uma súmula com menos poemas do que a soma dos poemas publicados nos seus livros anteriores (evidenciando-se assim um duplo trabalho de sintese quer no número de poemas, quer na extensão de cada um), julgo que este "Um Toldo Vermelho", para ter alguma chance de despertar outro sentimento que não o que, por exemplo, Rui Lage descreve no seu comentário, - fruto da inevitável comparação, - deverá ser lido longe, muito longe de qualquer um dos livros agora eliminados, ou seja, como se de uma obra outra, sem imagem em espelho, se tratasse. Mesmo que, merçê desta exaustiva e furiosa delapidação - que naturalmente deixa de fora elementos "explicativos" de ligação, exactamente esses que o Autor quis conscientemente eliminar, - se imponha, paradoxalmente e a espaços, o cotejo com a versão original para melhor os contextualizarmos, para que melhor comuniquem e possam ser compreendidos. Isto assumindo que se mantem no poeta, o desejo de comunicação com o leitor.

Por esta altura, e pelo número de vezes a que já voltei a este post durante a semana, já se deve ter percebido que me sinto pessoalmente ofendido com Joaquim Manuel Magalhães por ele me ter feito isto. Porém, o que me parece que o futuro vai reservar a este livro, é vir a ser um mero apêndice acerca da obra que estimávamos, que mais cedo ou mais tarde virá a ser recuperada. Quem já foi submetido a uma apendicectomia sabe, por experiência própria, qual é o destino que os cirurgiões destinam aos orgãos dispensáveis. No absurdo, o poeta até poderia ir pelas bibliotecas do país, a rasgar cada um dos seus livros disfarçado de agente da Leya, mas nunca poderia apagar a nossa memória. Onde fica no meio de tudo isto o nosso juízo crítico como leitores, se o poeta nos quer levar a ler uma obra que apreciamos menos, que nos proporciona um menor apelo aos sentidos, perante a qual exibimos uma resposta mais tímida e envergonhada, se todos temos lá em casa bem ao alcance da mão, as linhas que nos proporcionam o inverso do que acabei de escrever?

Juan Ramón Jiménez fez uma coisa parecida que nunca foi tomada em conta pela crítica: reescreveu toda a sua imensa obra poética... em prosa, numa altura em que achou que o verso já não tinha razão de ser. Essa crise de Juan Ramón Jiménez nunca foi compreendida - Jaime Gil de Biedma chegou inclusivé a escrever que Juan Ramón fôra idiota por depois de ter escrito uma obra poética tão intensa, não ter percebido a diferença com a prosa...), não aceitando ver naquela atitude, por exemplo, um ataque do poeta ao fundo último da poesia, como expressão do seu tempo e do próprio indíviduo. De uma forma ou de outra, gostando-se mais (?) ou menos destas versões, parece-me precipitado interpretar este gesto com ligeireza. É algo que custou ao poeta um esforço hérculeo e o deve ter ocupado por muitos meses.

Eis em mais um díptico, o célebre poema onde J.M.M. descreve (descrevia..., habituemo-nos) a operação STOP que o interpelou quando regressava da tipografia com João Miguel Fernandes Jorge, com a mala do carro cheio de "Cartucho"s, mas lidos desta vez pela ordem inversa:



28 DE SETEMBRO DE 74

A tourada
bandarilhava intervenção.
Alucinavam de reaça,
prejudicavam o trajecto
do retiro barbitúrico
à da Rainha D. Leonor.
Uma fila burguesa alterada,
mafia do Spínola.

Guardiões à bagageira.
Pacotes e rótulo,
cordel a rematar.)
«Livralhada, finório.»
O controladeiro popular empreendeu.
Um obeso coçava tomate.
Balda de treino no rizoma do PC.

Ateimei. Debandaram.

6º poema de "Gaita militar", incluído na segunda parte do livro "Traço", de "Um Toldo Vermelho" (2010)


§§


28 DE SETEMBRO

Começou tudo na tourada.
Isto é, como devia ser. O curro
predispunha à intervenção.
Essa urgência de voltar à mesma
havia de turbar o meu regresso
a Lisboa. Barreiras CDE de resistência
coscuvilhavam bagagens à procura
de calibres, uma fila maçada
de automóveis burgueses era vista
como homens de mão do Spínola.
No meu vinham cartuchos,
perto de duzentos com poemas,
rótulo nominal e fio com chumbinho.
O polícia popular não entendeu,
«São livros, meu senhor!»
Outros dois não queriam crer.
Eu ateimei. Acabou tudo a rir-se.

5º poema de "Escritos militares", 8ª parte de "Os dias, pequenos charcos" (1981)



O poeta pode dar-se ao luxo de burilar significativamente o poema original, reduzindo-o à sua essência quase como se de um resumo se tratasse - uma parafrase, ainda poética, - porque sabe que conhecemos de antemão o contexto primeiro do mesmo. Porém, lê-los pela ordem inversa resulta numa experiência de leitura completamente diferente.

E poderiamos viver só com a segunda versão? Poder... podiamos. Mas não era a mesma coisa.


«Lembro-me de toda a areia
até chegar ao ouro»


«Há bilhetes de autocarro
muito tristes, olha este, a despedida.»


requiem por "Uma luz com um toldo vermelho" (autografado por si, Joaquim).