Caravana (2008), o primeiro livro de Rui Manuel Amaral (Porto, 1973), publicado pela Angelus Novus, de Coimbra (info@angelus-novus.com) é um livro delicioso. Excelente literatura, este livro é todo um programa do absurdo, ou, se quisermos, de um neo-absurdismo que tem todo o sentido e razão de ser nestes tempos políticos em que vivemos.
O óbvio é aqui apresentado com a força de uma surpreendente revelação que passa, entre outras estratégias, por uma bem conseguida tentativa de normalizar o a-normal e aceitar o dis-funcional; pela obsessão pelo detalhe e a reverência pelo pormenor; pelo abuso da hipérbole, do superlativo, do nonsense, da adjectivação e das onomatopeias; pela desconstrução de narrativas que não se furtam a exibir o esqueleto do pensamento; pelos numerosos apartes que numa constante fuga para a frente, pretendendo explicar tudo mais acrescentam à desinformação; por uma escrita que anuncia a proposição seguinte com um suspense reverencial, criando expectativas e nexos lógicos frequentemente gorados em finais de inconclusa insatisfação.
Os títulos roubados ao hiperrealismo e o rol de personagens irreais mas muito concretas na sua biografia, visam criar no leitor efeitos de verdade e verosimilhança. O narrador coloca-se assim ao lado do leitor para afirmar com toda a certeza do mundo a mais improvável das verdades, não sendo infrequente a eliminação dos tempos históricos, o que permite que Platão se torne, a páginas tantas, coevo de Gregor Samsa, por exemplo, não se conseguindo definir muito bem, como aliás convém, onde começa o humor e acaba o sarcasmo, ou pelo menos, a ironia.
Não há, em tudo isto, uma mera atitude superficial de quem quer provocar o riso, fazer humor, mas antes o ímpeto provocador (e social e politico e crítico) de reflectir sobre o amargo da vida e da condição humana, essa que é transversal a todas as épocas e mundos. Tudo isto com a inteligência da tradição, com a dose certa de auto-ironia, com uma qualidade prosaica inegável, o bom gosto de quem leu uma caravana de génios e os sabe homenagear, tanto quanto os sabe subverter: Gogol, Aub, Vian, Lee Masters, Harms, Dostoievski, Kafka, Walser, tantos.
Mais de 60 micronarrativas ou poemas em prosa poética como lhes prefiro chamar, razão para aqui apresentar três desses textos. Zás!
Ptolomeu Hefestião
Ptolomeu Hefestião resistia imutavelmente a todos os ataques dos homens e à fúria mais terrível dos elementos. Mas era incapaz de resistir ao suave toque de um asfódelo.
Uma bela moral se poderia tirar facilmente daqui, mas não tenho tempo para isso. Bastará dizer que os morangos silvestres, sempre que possível, devem ser acompanhados com chantilly, pois trata-se de um ingrediente que introduz variedade e impede que esmoreça o apetite.
§
História de José Salmasius
José Salmasius era um homem bafejado pela sorte. Quando tinha fome bastava pensar em comida para que um bolo de arroz voasse directa e literalmente para dentro da sua boca. Vou escrever esta frase de novo: quando tinha fome bastava pensar em comida para que um bolo de arroz voasse directa e literalmente para dentro da sua boca. E isto é apenas um esboço daquilo que de facto sucedia, porque normalmente voava para dentro da sua boca toda a espécie de excelentes assados, cozidos, grelhados, estufados, etc.
Sim, concordo que isto não tem muito a ver com literatura, mas a culpa não é minha; limito-me a contar a verdade.
Um dia, de repente, também Salmasius desatou a voar. E voou, voou sem parar. Do outro lado do mundo, um crocodilo bafejado pela sorte estava a pensar em comida. Salmasius quase não sentiu nada. Foi tudo rápido demais.
§
Isto é um assalto!
— Isto é um assalto! — gritou o homem ao mesmo tempo que encostava um caderno de apontamentos à cabeça de uma vendedora, de 21 anos, residente em Mechelen.
A jovem contou que pelas 16h30 de ontem passava na Rue des Bogards, junto aos lavadouros públicos, em Bruxelas, quando foi abordada pelo assaltante, que lhe exigiu pelo menos quatro histórias originais ou o mesmo número de poemas.
Segundo a polícia, a vítima possuía apenas duas histórias e uma lista de supermercado, tudo avaliado em 10.400 caracteres tendo sido obrigada, para completar o valor exigido, a trautear o primeiro andamento do terceiro concerto brandeburguês, imitando uma tuba desafinada. De seguida, o criminoso fugiu na direcção de um automóvel cinzento escuro, onde o esperava um cúmplice que, de acordo com uma testemunha, era «a cara chapada de Mowsle Lockyer». «No mínimo, era o seu irmão gémeo» — acrescentou ainda a testemunha com certa emoção.
6 comentários:
Adorei!
Obrigada pela partilha.
Gostei da amostra, se possível vou adquirir o livro. Tenho que lhe dizer que os gatos sabem das coisas.
Muito bom! Já comprei o livro.
Instigante e curiosa a forma de expressão literária com a qual brindam os leitores. Como adquiro o livro? Enquanto isso, me torno assíduo por aqui, abraços. Domingos.
genial
obrigadinho
fantástico!
Enviar um comentário