Mostrar mensagens com a etiqueta VASCO GRAÇA MOURA. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta VASCO GRAÇA MOURA. Mostrar todas as mensagens

domingo, abril 04, 2010

VASCO GRAÇA MOURA acerca de FEDERICO GARCÍA LORCA

«Tudo somado, eu iria para o “Llanto por Ignacio Sanchéz Mejías”, do Lorca, ou para o terceiro andamento do texto, se o todo for julgado demasiado longo. A razão é simples: é um dos grandes poemas trágicos do século XX, obra de um "diestro" da palavra poética, e põe em presença o homem, as suas capacidades de razão, de sensibilidade e de coragem, a enfrentar a fúria bruta da irracionalidade numa coreografia da morte e do destino em quatro andamentos de extraordinária musicalidade, com o "basso ostinato" do primeiro, a toada de romanceiro do segundo, a meditação fúnebre do terceiro e a errância melancólica dos sentimentos e da memória do quarto.»


PRANTO POR IGNACIO SANCHÉZ MEJÍAS


(tradução de Vasco Graça Moura, em “Garcia Lorca: o Romanceiro e o Pranto”, Lisboa, Quetzal, 1998)

1

A colhida e a morte


Davam cinco da tarde.
Davam as cinco em ponto dessa tarde.
Um moço trouxe uma toalha branca
davam cinco da tarde.
Uma seira de cal já preparada
davam cinco da tarde.
Tudo o mais era a morte e só a morte
davam cinco da tarde.

O vento fez voar os algodões
davam cinco da tarde.
E o óxido semeou cristal e níquel
davam cinco da tarde.
Já lutavam a pomba e o leopardo
davam cinco da tarde.
E a coxa com uma haste desolada
davam cinco da tarde.
Começaram os dobres do bordão
davam cinco da tarde.
As campanas de arsénico e o fumo
davam cinco da tarde.
Pelas esquinas grupos de silêncio
davam cinco da tarde.
E o touro só de coração ao alto!
davam cinco da tarde.


2

O sangue derramado


Que não quero vê-la!

Dizei à lua que venha,
que eu não quero ver do sangue
de Ignacio a mancha na arena.

Que não quero vê-la!

A lua de par em par.
cavalo de nuvens quietas,
e a praça cinza do sonho
com salgueiros nas barreiras.

Que não quero vê-la!
Que a lembrança se me queima.
Ide avisar os jasmins
em sua alvura pequena!

Que não quero vê-la!

A vaca do velho mundo
passa a língua da tristeza
sobre um focinho de sangues
derramados pela arena,
e os touros de Guisando,
quase morte e quase pedra,
mugiram como dois séculos
fartos de pisar a terra,
Não.
Que não quero vê-la!

Pelos degraus sobe Ignacio,
toda a morte às costas leva.
Buscava o amanhecer
e o amanhecer não era.
Busca o seu formoso corpo
e encontra a sangria aberta.
Ah, não me digais que a veja!
Não quero sentir o jorro
em que a força desalenta;
esse jorro que ilumina
os palanques e rebenta
no veludinho e no couro
de uma multidão sedenta.
Quem me grita a mim que assome?
Ah, não me digais que a veja!

Não se fecharam seus olhos
quando viu os cornos cerca,
mas então as mães terríveis
levantaram a cabeça.
E através das ganadarias
houve um ar de vozes secretas
que gritavam a touros celestes,
maiorais de uma pálida névoa.

Não houve príncipe em Sevilha
a poder pedir-lhe meças,
nem espada qual sua espada,
nem coração tão deveras.
Como um rio de leões
a sua força soberba,
e como um torso de mármore
a desenhada prudência.
Um ar de Roma andaluza
o dourava na cabeça
em que o seu riso era um nardo
de sal e de inteligência.
Que mor toureiro na praça!
Que serrano mor na serra!
Que brando com as espigas!
nas esporas que dureza!

E que terno com o orvalho!
Que deslumbrante na feira!
Que tremendo com as últimas
bandarilhas só de treva!


Porém já dorme sem fim.
Já os musgos e a erva
abrem com dedos seguros
a flor da sua caveira.
E o seu sangue já lá vem cantando:
cantando pelos plainos e lameiras,
resvalando por hirtos cornos frios,
vacilando sem alma pela névoa,
tropeçando nos cascos aos milhares
como uma língua triste, escura, espessa,
para formar um charco de agonia
junto ao Guadalquivir lá das estrelas.

Oh branco muro de Espanha!
Oh negro muro de pena!
Oh sangria atroz de Ignacio!
Oh rouxinol dessas veias!
Não.
Que não quero vê-la!

Que não há cálice que a contenha,
que não há andorinhas pra bebê-la,
não há geada de uma luz que a esfrie,
não há canto nem dilúvio de açucenas,
não há cristal que a cubra já de prata.
Não.
Eu não quero vê-la!


3

Corpo presente


A pedra é uma fronte por onde os sonhos gemem
sem terem água curva nem ciprestes gelados.
A pedra é uma espalda para levar o tempo
com árvores de lágrimas e tiras e planetas.

Vi chuvas pardas correrem para as ondas
erguendo os ternos braços feitos crivo,
para não serem caçadas pela pedra alongada
que desata seus membros sem se empapar de sangue.

Porque a pedra recolhe sementes, nevoeiros,
os ossos das calhandras e lobos de penumbra;
mas ela não dá sons, nem dá cristais, nem fogo,
só praças e mais praças e outras praças sem muros.

Sobre a pedra já está Ignacio o bem-nascido.
Já se acabou: que foi? Olhai sua figura:
veio a morte cobri-lo de pálidos enxofres
e pôs-lhe uma cabeça de obscuro Minotauro.

Já se acabou. A chuva penetra em sua boca.
O ar enlouquecido esvaziou-lhe o peito,
e o Amor, empapado com lágrimas de neve,
vai-se aquecer no cimo das ganadarias.

Que dizem? Um silêncio com fedor repousa.
Estamos com um corpo presente que se esfuma,
com uma forma clara que teve rouxinóis
e que vemos encher-se de buracos sem fundo.

Quem enruga o sudário? Não é verdade o que diz!
Nem canta aqui ninguém, nem chora no recinto,
nem espeta as esporas, nem espanta a serpente:
aqui não quero mais do que os olhos redondos
para ver esse corpo sem possível descanso.


Eu quero ver aqui os homens de voz dura.
Os que domam cavalos e dominam os rios:
os homens a quem soa o esqueleto e cantam
com uma boca cheia de sol e pedernais.

Aqui eu quero vê-los. Diante desta pedra.
Diante deste corpo com as rédeas quebradas.
Eu quero que me mostrem onde está a saída
para este capitão atado pela morte.

Eu quero que me ensinem um pranto como um rio
que tenha doces névoas e as margens mais profundas,
para levar o corpo de Ignacio e que se perca
sem escutar o duplo resfolegar dos touros.

Que se perca na praça redonda lá da lua
que finge de menina dolente rés imóvel;
que se perca na noite sem música dos peixes
e no branco daninho do fumo congelado.

Não quero que lhe tapem a cara com um lenço
para que se acostume à morte que assim leva.
Vai-te, Ignacio: Não sintas esse quente bramido.
Dorme, voa, repousa: que também morre o mar!


4

Alma ausente



Não te conhecem touro nem figueira,
nem cavalos nem formigas do teu lar.
Não te conhece a tarde ou o menino,
porque tu estás morto para sempre.

Não te conhece a pedra no seu dorso,
nem o negro cetim onde te perdes.
Não te conhece o teu recordar mudo
porque tu estás morto para sempre.

O outono virá com os seus búzios,
uva de névoa e montes agrupados,
mas ninguém quererá fitar teus olhos
porque tu estás morto para sempre.

Porque tu estás morto para sempre,
como todos os mortos que há na Terra,
como todos os mortos que se esquecem
num monturo de cães que se apagaram.

Ninguém que te conheça. Não. Mas eu te canto.
Eu canto para já teu perfil e tua graça.
A madurez insigne do teu conhecimento.
Tua apetência de morte e o gosto de sua boca.
A tristeza que teve tua valente alegria.

Tardará muito tempo em nascer, se é que nasce,
um andaluz tão claro, tão rico de aventura.
Eu canto sua elegância com palavras que gemem
e recordo uma brisa triste pelas oliveiras.


§


Vasco Graça Moura (Foz do Douro, Porto, 3 de Janeiro de 1942) é escritor e político. Licenciado em Direito, pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, foi advogado até 1983, tendo optar pela carreira literária que o havia de confirmar como um nome central da poesia portuguesa da segunda metade século XX. A par da poesia, Graça Moura está na escrita como dramaturgo, ensaísta, tendo traduzido Dante Alighieri, William Shakespeare, Petrarca, Jean Racine, François Villon, Frederico Garcia Lorca e Rainer Maria Rilke, entre outros. Recebeu o Prémio Pessoa em 2005 e o Prémio Vergílio Ferreira em 2007. Foi distinguido com o Prémio de Poesia do PEN Clube Português (1994) e da Associação Portuguesa de Escritores (1997), a Coroa de Ouro do Festival de Poesia de Struga (Macedónia, 2004). Recebeu a Medalha de Ouro da cidade de Florença desde 1998. Em Abril de 2008, é distinguido com o Prémio de Tradução 2007 do Ministério da Cultura italiano, que distingue anualmente o melhor tradutor estrangeiro de obras italianas, por decisão unânime do júri. Juntamente com a professora e crítica literária Maria Alzira Seixo, é um dos mais conhecidos opositores à ratificação por Portugal do proposto Acordo Ortográfico defendendo que o Acordo Ortográfico serve interesses políticos e económicos do Brasil, pretende abrasileirar a ortografia de muitas palavras do português europeu e inflige lesões irreversíveis na língua portuguesa. É co-autor e primeiro signatário da Petição Manifesto em Defesa da Língua Portuguesa Contra o Acordo Ortográfico, que desde 2 de Maio de 2008 recolheu mais de 110 000 assinaturas.


Leia mais no Poesia Ilimitada sobre Vasco Graça Moura,
aqui e aqui.





quarta-feira, abril 12, 2006

Conversa com VASCO GRAÇA MOURA

Durante a última semana, Poesia Ilimitada tem mantido uma interessante conversa com VASCO GRAÇA MOURA (Porto, 1942) que vale a pena partilhar. Uma conversa a pretexto de nada. Uma vez mais, um pretexto apenas para falar de poesia.


João Luís Barreto GuimarãesO real tem constituído, ao longo dos tempos, uma (pre)ocupação permanente dos poetas. Regressa-se agora a um real de onde, eventualmente, nunca se partiu por completo. Que apelo é esse que a realidade exerce sobre o escritor que o leva a escrever? Que vício é esse que leva o poeta a ousar apreendê-lo, por palavras?


Vasco Graça Moura – As palavras estão presas ao real. Não há praticamente nenhuma poesia, nenhuma literatura, que sobreviva se não houver uma especial coerência entre elas e a realidade. Talvez o mesmo se possa dizer em relação a todas as outras artes, sendo certo que, na música, estas coisas se põem em termos qualitativamente diferentes (provavelmente na música, e no Ocidente, o sistema tonal tende a exercer a mesma força de atracção que o real). Estas coisas para mim põem-se em termos de uma extrema simplicidade, sem altos voos filosóficos, num plano prático e corrente dos significados. É claro que a espessura do real é múltipla: tanto inclui o onírico como o pensamento abstracto. Eppure... é sempre o real. Hoje, assim como nas artes o fim do século XX parece ter ficado assinalado por um "neo-figurativismo" (outra vez o real...), também na poesia se regressa ao real (subjectivo e objectivo) em muitas modalidades. O escritor é um ser humano que utiliza as palavras com um certo nível de exigência qualitativa. Capturar o real, mesmo que seja para fazê-lo "inflectir", é um dos seus objectivos. É provável que o cinema e a fotografia tenham contribuído para acentuar essa necessidade. Não penso que se trate de um vício, mas de uma condição inelutável. A literatura é uma forma de criação artística pela palavra, mesmo quando tenta convocar outras áreas (veja-se, por exemplo, a ekphrasis). A sua relação com o real decorre naturalmente desta condição verbal.

JLBGAgrada-me pensar a poesia contemporânea à imagem de um funil onde de um lado se caldeassem cinema e fotografia, como referiu, mas também pintura, escultura, música, filosofia, sociologia, e do outro se desse a beber uma bebida plural. Não lhe vou perguntar, naturalmente, se o rótulo dessa garrafa traz escrito “Pós-modernidade”, antes o seguinte: Agora que as diversas disciplinas da arte experimentaram o verdadeiro sabor da interdisciplinaridade, alguma vez voltará, em sua opinião, essa noção de arte pura e impoluta, no sentido clássico do termo?

VGM – Penso que não. De resto, talvez uma arte pura de "contaminações" nunca tenha existido, a não ser para algumas teorias do segundo quartel do século XX. As artes tiveram sempre pontes entre si. Na literatura, isto vem desde Homero e o escudo de Aquiles no canto XVIII da Ilíada. Passa por Dante e pela presença das artes na Divina Comédia, sobretudo no Purgatório. E estou a pensar em Ficino, que forneceu ao Boticcelli programas iconológicos inteiros (como a obra de Dante lhos forneceu), ou em Camões, que tem incursões "plásticas" perfeitamente do seu tempo: o retrato de Tritão, nos Lusíadas, é feito à maneira de Arcimboldo. As ninfas da Ilha dos Amores antecipam algumas formas de Rubens, assim como as flores e frutos ali descritos lembram a natureza morta holandesa e flamenga de finais do séc. XVI, princípios do séc. XVII. E o que faz o Cesário com o piquenique de burguesas? A pós-modernidade não será o regresso, mais em bruto, da citação e da colagem, de modo a "refigurar" um real que correntes anteriores do séc. XX tinham simulado esquecer ou feito por esquecer? O que há é maneiras diferentes de procurar essas correspondências, seja recorrendo à metáfora, seja à descrição, seja ainda a imitações ou simulações de processos estruturais. Por exemplo, o Eugénio de Andrade recorre predominantemente às metáforas para encontrar equivalências, enquanto o Sena da Arte da Música é mais descritivo. Não lhe parece?

JLBGDe facto, quando relembro a rapariga de Cesário, em “Num Bairro Moderno”, por exemplo, com o seu cabaz de frutos, legumes e hortaliças, ocorre-me sempre a imagem de certas figuras de Arcimboldo. O que me leva a colocar-lhe a questão da poesia enquanto jogo, lúdico e virtuoso, oficinal e formalista: O lado mais lúdico da poesia será incompatível com a sua espessura reflexiva? Existirá mesmo uma poesia séria, dos grandes temas como a fugacidade do tempo e a inevitabilidade da morte, por oposição a uma poesia menor, das pequenas coisas quotidianas? Mais ainda: Essa eventual mudança de paradigma reflectirá contemporaneamente a perda de referentes, de valores, do divino?

VGM – Lúdico, aqui, não coincide necessariamente com situações bem-humoradas. Um dos poemas mais lúdicos da nossa literatura é o labirinto de Camões "Corre sem vela e sem leme / a nau que se vai perder", primeiro (creio eu) grande exercício combinatório das nossas letras e que tem mais a ver com o trágico do que com outras categorias. O mesmo se diga dos "violons longs" do Verlaine ou das "arcadas / do violoncelo" do Camilo Pessanha, em que o patético resulta de um jogo musical de sonoridades. Há, decerto, grandes temas que podem contrapor-se a uma poesia do quotidiano mais imediato e corriqueiro. Assim como há poesia de grandes voos filosóficos e poesia de grandes mergulhos eróticos (e nesta contraposição até o adjectivo "grandes" tem implicações diferentes). Mas um minúsculo poema pode conter (e contar) muita coisa. E a categoria de poesia menor é muito discutível. O Eugénio dizia, com muita injustiça, do Pedro Homem de Mello que este era "um grande poeta menor"... Olhe o Carlos Queirós: "Português e vivo / é diminutivo. / Só fazemos bem / Torres de Belém". Ou o José Fernandes Fafe: "Compreende-se tudo / de repente: / São oito séculos a ver o sol morrer / afogado no mar / diariamente" (cito de memória e não garanto a pontuação...). Também não penso que a mudança de paradigma reflicta a perda de valores. A perda de valores, a angústia perante ela e o sentimento de uma irrecuperabilidade deles, também tem sido uma constante em certos lamentos poéticos desde há muitos séculos. A mudança de paradigma está talvez em que, hoje, se vê o "poético" em realidades ou situações a que antes não se atribuía essa qualidade, o que também acontece na cultura em geral.

JLBGEstou correcto se inferir que, na sua opinião, tudo ou quase tudo pode ser matéria de um poema? Ou, existirá um limite formal, de linguagem, a partir do qual já não se pode chamar à “coisa”, poesia? E ainda isto: Na sua actividade como escritor – perante a matéria-prima em estado bruto, tem desde logo a clara noção se o instante lhe vai exigir um poema, uma crónica ou um texto em prosa? Por outras palavras: é a matéria-prima que determina o género literário ou o virtuosismo do escritor que o impõe?

VGM – O ideal seria que o poeta tivesse uma tal oficina que pudesse escrever um poema sobre o que quer que lhe apetecesse. Na prática, est modus in rebus… Na minha actividade, é frequente achar que uma ideia pode converter-se em poema, ensaio, ficção ou crónica. Aí, entra em funcionamento uma espécie de “sentido estratégico” relativamente ao texto: O que é que eu quero dizer? Como é que posso dizê-lo melhor ou mais eficazmente? Mas também acontece que certas virtualidades só surjam in actu, no próprio momento da escrita, e aí podem obrigar a uma inflexão de um género para o outro. De qualquer maneira, eu não me programo para escrever isto ou aquilo. Funciono mais ao sabor do que me apetece fazer e o texto que resulta é um desenvolvimento desse apetite… Se, a partir de dois ou três decassílabos, pode acontecer que não se saiba ainda se aquilo vai dar um soneto ou não, a verdade é que o virtuosismo pode suscitar uma opção específica: Por exemplo, se eu resolver escrever uma sextina, ou um labirinto à boa maneira maneirista, ou um soneto em espelho, que possa ser lido indiferentemente do princípio para o fim ou do fim para o princípio, ou umas “voltas a mote”, ou uma canção de estrutura canónica, normalmente tenho de começar pela escolha da forma e ir acertando o tratamento da matéria com as exigências do espartilho escolhido. Mas enfim, em nada disto há regras absolutas.

JLBGSerá isso que explica que certos poemas em verso branco, em forma livre, nos pareçam por vezes mais perfeitos do que, por exemplo, alguns sonetos ou sextinas? A sua noção de poema compreende o conceito oficinal de "poema perfeito"? O que poderá ser isso de “poema perfeito”?

VGM – A questão, com toda a franqueza, não me parece muito bem colocada. O sentido da perfeição sobrepõe-se a quaisquer conceitos oficinais. Por exemplo, é discutível que as redondilhas "Sobre os rios que vão", de Camões, sejam oficinalmente perfeitas. Há quem tenha feito a análise de toda uma série de características do poema (repetições, hipérbatos, anacolutos, cacófatos, etc.) para considerá-los "tiques de velhice". A este respeito, já uma vez citei o Adorno, quando ele diz, a propósito do estilo de maturidade em Beethoven, que nos grandes artistas as obras de maturidade representam as catástrofes. Ele refere-se também às regras de "escola" que são transgredidas pelo artista face à pressão daquilo que precisa de exprimir ante o pressentimento de uma aproximação da morte. Ou seja, no plano oficinal, o poema de Camões está longe de ser perfeito. E todavia o poema parece-me "perfeito" no plano de que estamos a falar. É mesmo, para mim, o maior poema lírico da literatura ocidental... Por outro lado, todos conhecemos poemas oficinalmente perfeitos que valem muito pouco. A questão coloca-nos perante o mistério da arte, aquilo que escapa a toda a dissecação, que tem a ver com um certo sentido de inefabilidade e com uma fenomenologia da fruição estética. Para mim, a oficina, a técnica, o que se lhe quiser chamar são meras condições, é certo que condições sine quibus non, mas, para além delas, tem de haver mais alguma coisa no resultado. A perfeição pode ser atingida pela transgressão das regras. Sentimos que um poema é "perfeito" quando da sua leitura nos resulta uma plenitude que não alcançaríamos de outro modo. Mas isto também é uma perífrase que não resolve nada...

JLBGEra esse sentido de "perfeição", pela transgressão das regras, a que me referia: Um "poema perfeito" pode bem ser essa rosa que se ergue pelo caule, em toda a sua harmonia, mas que devolvida à jarra nos deixa os dedos a sangrar. Um "poema perfeito" terá que ter arestas, independentemente do seu tema, a questão estará, parece-me, em não as limar em demasia, antes torcer a palavra até ao osso. O que me sugere esta derradeira pergunta: Que papel antevê para a poesia nos dias de hoje? A mesma secreta arte de alguns, para alguns? O regresso do poeta às preocupações sociais? Mais ainda: O poeta, os escritores em geral, terá o direito – é uma pergunta provocadora, bem sei – de se manter autista perante os sinais que a sociedade envia diariamente?

VGM - Não antevejo para a poesia um papel muito diferente daquele que pode caber às outras formas de expressão literária ou artística. O que se espera de um escritor é que faça literatura. O criador está colocado perante a necessidade de se exprimir, na sua singularidade humana e num domínio que não é propriamente utilitário (a não ser nas indústrias do best-seller...), utilizando determinados recursos que a sua capacidade e a sua orientação lhe proporcionam. A mesma singularidade humana que o faz ser criador determinará as modulações específicas da sua produção: intimismo, poesia "pura", intervenção social, reflexão filosofante, aproximação de outras áreas da criação, poesia do quotidiano, poesia concreta, etc., etc., mesmo, se disso carecer, um certo "autismo" alheado de tudo o mais - tudo isso é um problema que só diz respeito a ele e à sua liberdade e ele tem o direito inalienável de resolvê-lo como muito bem entender. As sociedades e o tempo encarregar-se-ão de validá-lo ou não. O criador propõe-se e expõe-se. Mas impõe-se? A resposta não é ele quem pode dá-la...


sexta-feira, abril 07, 2006

VASCO GRAÇA MOURA

Vasco Graça Moura nasceu no Porto, em 1942. Licenciado em Direito, actividade que chegou a exercer, é autor de diversas obras de ensaio, poesia, romance, teatro, crónica, e ainda de traduções. O poema "ofício de morrer" foi publicado no seu livro de 1984, "Os Rostos Comunicantes".


ofício de morrer

eu imagino assim a morte de pavese:
era um quarto de hotel em turim,
decerto um hotel modesto, de uma ou duas
estrelas, se é que havia estrelas.

uma cama de pau, de verniz estalado,
rangendo de encontros fortuitos, um colchão mole e húmido
com a cova no meio, a do costume.
corria o mês de agosto com sua terra escura

encardindo as cortinas. nada ia explodir
naquele mês de agosto àquela hora da tarde
de luz adocicada. e alguém pusera
três rosas de plástico num solitário verde.

vejo como pavese entrou, como pousou a maleta
com indiferença, dobrou alguns papéis
e despiu o casaco (como nos filmes
italianos da época). depois foi aos lavabos

no corredor, ao fundo. talvez tenha pensado
que esta vida é uma mijadela ou que.
voltou ao quarto, havia
uma fétida alma em tudo aquilo.

ele abriu a janela
e pediu a chamada telefónica.
a noite ia caindo sem palavras, memo sem businas
excessivas. encheu um copo de água. e esperou.

quando a campainha tocou, havia muito pouco
a dizer e ele já o tinha dito:
já tinha dito quanto amar nos torna
vulneráveis; e míseros, inermes;

que é precisa humildade, não orgulho;
e parar de escrever;
e que dessa nudez é que morremos.
foi mais ou menos isto – a nossa condição

demasiado humana, a voz humana, a frágil
expressão disso tudo, uma firmeza tensa.
«e até rapariguinhas o fizeram».
tinham nomes obscuros e nenhum

remorso lancinante, ninguém pra falar delas.
a mais temida coisa é a coragem
do que parecia fácil: tudo o que não se disse
carregado num acto de súbitas fronteiras.

foi mais ou menos isto. não sei se ele a seguir
pôs do lado de fora um letreiro
com do not disturb ou coisa assim,
nem se tomou as pastilhas uma a uma, ou se as contou.

não sei se o encontrou uma criada,
se a polícia veio logo, se deixou uma carta
ao seu melhor amigo, se apagou a luz,
nem se pousou ao lado a carteira, o relógio, a esferográfica.

não sei se entrou na morte como quem
traz imagens pungentes na cabeça,
palavras marteladas de desejo, ou como quem friamente
está no avesso do sono e vai calar-se e é justo.

não sei se foi assim, se existe uma outra
verdade imaginável ou vedada. sei que ele tinha
um olhar decidido, alguma instigadora, e quarenta e dois anos,
e sei que nessa altura há já poucas verdades

e nenhuma dimensão biográfica na morte.
já vem nas escrituras. eu prefiro
dizer que ele fechou a porta à chave
e sei que era viril a sua transparência.