domingo, julho 05, 2009

JORGE GOMES MIRANDA (3)

(Leia a crítica do jornal espanhol abc: Objetos parlantes, por Jaime Siles)


O título, como convém, é ambiguo. Começamos a ler os poemas - que têm por título substantivos, - e logo nos assalta a dúvida sobre quem será o narrador: o poeta, autobiográfico, ou uma personna literária. Logo no primeiro poema, “Chávena” apercebemo-nos da existência de um homem como personagem, para mais tarde descobrirmos, vinte e uma linhas depois, que afinal é a própria chávena quem fala: “o chá desce sobre mim”.

"O Acidente" é um livro de poemas que joga com o leitor e o surpreende a cada passo. Ao segundo poema, “Bilhete de comboio”, começamos a desconfiar que o jogo da personificação se vai repetir, que a voz de cada poema irá ser a do objecto cujo significante encima o texto como título. Pela fala do “Bilhete de comboio” apercebemo-nos de que alguém partiu, e ao terceiro poema, pela voz da “Estante”, ficamos a saber que também existe uma criança a rondar por ali. No corpo do quarto texto é o “Lápis” quem informa que a partida aludida no segundo poema terá sido definitiva, - uma morte, portanto - e é um “Relógio”, ao sexto poema, quem nos diz que quem morreu foi uma mulher.

Este processo prossegue, de revelação em revelação, socorrendo-se de um quotidiano familiar e coloquial, mas mais importante do que isso, traçando a arqueologia de uma narrativa, re-construindo o esboço de um episódio, de uma estória, libertando aos poucos informação rasurada, enigmática, tensa, sintética, como é próprio da construção de uma ficção. Como se a complexidade sintática das obras anteriores a esta desse agora lugar a uma prosa fluente e limpa, densificando-se, ao invés, a forma e a estrutura.

Este é um livro conceptual e aí reside a sua originalidade. Não que JORGE GOMES MIRANDA (Porto, 1965) não tivesse já esboçado este internar da poesia na ficção (citarei apenas como dois exemplos “Quatro Mensagens deixadas no Telemóvel” (de “A Hora Perdida”, Campo das Letras, 2003), ou a sequência de dois poemas em forma de "E-Mail" sobre a Guerra do Golfo (“Pontos Luminosos”, Averno, 2004), mas aqui como mais tarde em “Resgate” (Fundação de Serralves, 2008), - neste último cruzando de forma ideal duas narrativas e duas vozes diferentes num só livro, - essa intenção representa todo um programa de escrita. Surpreendente e original, repito.

A razão porque regresso a este livro é a oportuna edição que teve em Espanha na Editorial Quálea, (Torrelavega, Cantábria, 2009), graças à visão, labor e inteligência crítica de José Ángel Cilleruelo que o repescou à vasta poesia portuguesa de hoje e o traduziu para castelhano, assim repondo além-fronteiras com inteira justiça, a atenção que este livro não mereceu em Portugal.

Voltando ao livro: aquele jogo de personificações narra qualquer coisa que não revelarei aqui mas permitir-me-ei escolher alguns dos seus momentos tensos, elípticos, irónicos ou humorados, como quando, por exemplo, o “Bilhete de comboio” lamenta placidamente que “meu destino será permanecer / e um dia despertar, no meio de um livro”, ou a “Lâmina de barbear II” (existe uma primeira “Lâmina de barbear”), enciumada, fala da “casa de banho / onde, sem hesitação ou culpa, / me trocou por outra", ou ainda quando o “Calendário de bolso” pisca o olho ao peso da memória relembrando que “em mim trago também / os dias passados”. Ou, finalmente, quando a “Mala de viagem” se queixa de que ele “Atira a porta de casa / (...) Com maus modos leva-me pela mão" rematando óbviamente com duplo sentido, que só "Por pudor não direi o que trago dentro de mim.

Objectos com sentimentos, portanto, mas também o sentir os objectos olhando uma parcela do mundo com uma fortíssima preocupação ficcional, distanciando-se esta escrita da biografia e do confessionalismo. José Ángel Cilleruelo fala mesmo "de um passo mais no caminho de despersonificação que abriu Fernando Pessoa na poesia europeia: perdida a essência do eu, ganham vida os objectos, as coisas, os acidentes impregnados do rumor do sujeito".

Este é seguramente um daqueles livros que pelos motivos explicados funciona melhor em leitura completa. Mas aqui fica um poema de “O Acidente” (Assírio & Alvim, 2007), que, relembro, foi finalista da short-list de poesia do importante prémio literário Correntes d’ Escritas 2009. Com a devida vénia:



MOLA DE ROUPA

Conservei-me afastada do estendal
durante algum tempo.
Sofro de vertigens, por isso
intimidava-me olhar para baixo,
o pátio vazio, restos de flores secas.
Um prédio com dez andares
e ele tinha logo que viver no último,
tendo como horizonte o mar
de terraços e antenas parabólicas.

Quando, chegado com a roupa
da máquina de lavar,
pega em mim,
de suas mãos eu deslizo para o chão.
Apressado, em vez de me apanhar
imediatamente, escolhe outra;
no final, atira-me para o cesto
de verga.

Não é que seja particularmente ardilosa,
mas verdade seja dita, preferia ser
mola de rés-do-chão,
dessas que faça sol ou chuva
sempre prendem a roupa numa corda
estendida no pátio.
O destino quis-me feita de plástico,
com um coração inclinado à melancolia.
Tenho, no entanto, como divisa
antes quebrar que torcer.

Sonho com o dia em que nas mãos da criança
serei um comboio.


§


Também aqui e aqui.


2 comentários:

Adriana Godoy disse...

Sempre venho aqui, mas raramente comento. Parabéns por esse espaço tão rico sempre. Abraço.

Oliveira disse...

Fala de molas e toalhas a secar. É secante.