segunda-feira, julho 06, 2009

A. M. PIRES CABRAL

A. M. PIRES CABRAL nasceu em 1941 em Chacim, Macedo de Cavaleiros, Trás-os-Montes. Licenciou-se em Filologia Germânica na Universidade de Coimbra. É autor de uma vasta obra literária onde a poesia não assume o menor papel. "As Têmporas da Cinza" (Cotovia, 2008), é um livro impressionante de maturidade. Esta é a poesia dos grandes temas entre os quais a morte, a frágil condição humana, a fraca matéria de que é feita a carne, a crítica a um deus indiferente perante o peso omnipresente da passagem do tempo. Dois poemas, com a devida vénia, deste livro que curiosamente, foi também finalista da short-list do prémio Correntes d' Escritas 2009:



A MOSCA DO SERVIÇO DE URGÊNCIA


A velha está sentada na sala de espera.
Chegou amparada pela filha, que a depositou ali
enquanto trata dos papéis. A aflição
deve ter sido tão súbita e imperiosa,
que a velha vem descomposta,
não houve tempo para atender a pudores.
Perdeu algures um chinelo.

Está sentada, muito branca, e parece
mascar as dores com as gengivas nuas.

Tem a morte pousada na cara, sob a forma
de uma mosca insistente e de ar atarefado.
Não tem forças para a sacudir.
A mosca aproxima-se da boca, depois parece
interessar-se pelo nariz. Delicia-se
com o muco ao canto do olho, como a criança
que come a ocultas um gelado interdito.
É como se estivesse em casa e percorresse
os aposentos ao sabor dos afazeres.
Cansada do rosto, levanta voo
e vai pousar, desta feita, numa mão.
Mas breve volta atrás, como se se tivesse
esquecido ali de alguma coisa,
e demora-se um pouco a tentar lembrar o quê.

Esfrega uma na outra as patas dianteiras,
celebrando a vitória que logo virá.

A velha já nem se dá conta
desse penúltimo escárnio da morte.
Está visivelmente madura para ela,
pronta a entregar-lhe os destroços do corpo.

Consumada a posse daquele território,
a mosca vai no seu voo fortuito
em busca de mais carne a requerer.
Há dezenas de doentes na sala.
Apalpa-os um por um, como se faz aos figos,
para saber qual deve ser comido
em primeiro lugar.

O mais certo é que acabe - mais dia, menos dia -
por devorá-los todos.



§


FARPAS


Tanta farpa cravei por acidente
no meu próprio flanco.

As farpas oscilam a cada passo meu,
lacerando sempre um pouco mais
os rasgões que já trago na carne.

Toma para ti - ò touro divino,
verdadeiro destinatário delas! -
algumas dessas farpas.

Que todas sobre mim são muito peso,
muita dor,
muito sangue empastando sobre a pele,
muita mosca cevando-se no sangue.


3 comentários:

Efigênia Coutinho ( Mallemont ) disse...

João Luís Barreto Guimarães , é um imenso prazer abrir um Blog como este e ler uma postagem tão bem escolhida, onde vamos conhecendo poetas, escritores de primeira linha deste mundo virtual.
Meus cumprimentos, minha tarde foi gloriosa nesta passagem aqui,
Efigênia Coutinho
Escritora

Adriana Godoy disse...

Sensacional!!

bruma do tempo disse...

A mosca necrófila ... Choca mas o que transparece resulta, portanto!