quarta-feira, março 22, 2006

A MINHA LISTA DE COMPRAS É POESIA ?


Relendo os comentários - os menos acirrados - que aqui foram deixados durante a recente polémica que se criou neste blogue, apercebo-me de como a esmagadora maioria das visitas discordam veementemente dos exemplos que citei como sendo poemas, e mais, como sendo bons poemas. A palavra foi que “aquilonão era poesia. E no entanto, não me consigo sentir derrotado e apetece-me insistir - sem teimosia, acreditem, mas com profundo respeito por quem por aqui vai perdendo o seu tempo - que aqueles textos são... poemas, e se revelarão muito importantes no nada importante contexto da poesia portuguesa contemporânea. Com as devidas diferenças - com as devidas diferenças, repito - dêmos um salto até à pintura e gastemos um minuto com alguns dos bons exemplos da história da pintura contemporânea. Na primeira década do Séc. XX, Braque e Picasso decidiram pintar o mundo com formas quadradas: violas, tradicionalmente representadas com linhas curvas, foram então traduzidas por linhas rectas. Malevich, por seu turno, chamou "arte pura" a um quadrado preto pintado sobre tela... E Duchamp, uma década depois – como bem notou Jorge Melícias – denominou de “Fonte” um urinol, ainda por cima produzido em série e por outrem. O - já famoso por aqui - sobrinho de Herculano Lage – e digo-o sem ironia – bem poderia ter pintado qualquer um dos quadros tardios de Pollock, mais não fosse por acidente: fios de tinta caindo aleatoriamente pela tela disposta pelo chão. E no entanto, é extremamente interessante tentar imaginar qual terá sido a reacção que, maioritariamente, aquelas obras terão provocado à altura, ainda que hoje possam passar por mais ou menos consensuais. A pergunta, então, é a seguinte: o que faz com que determinada obra, actualmente tida como consensual, possa ter sido vista no seu tempo como um insulto à arte? A segunda pergunta resulta da primeira: que resistências são essas que se opõem à evolução e ao desenvolvimento de uma determinada disciplina artística? Terceira dúvida: como desenvolver em cada um de nós - em tempo real, contemporâneo, – uma eficaz percepção do valor artistico de cada obra de arte que nos é dado presenciar como novidade? O Tempo - o passar do tempo - é uma das respostas mais óbvias, tão óbvia quanto inútil, porque tardia. Então, como? Por um apurado conhecimento da história de cada uma dessas disciplinas e suas sucessivas rupturas? Mas, e se a excelência dessa obra não tiver passado por uma ruptura, por uma vanguarda? Por uma extraordinária capacidade de perceber o seu tempo? Pela identificação da originalidade entre o comum? Por uma qualquer ética ou estética? Por ser perfeita? Porque, simplesmente, gostamos dela? Regressemos então - sem comparações, por favor - a esse universo pequeno e dispensável que é a poesia e deixando de lado o polémico "Martha" de Manuel de Freitas (Vale de Santarém, 1972), atentemos ao outro poema que referi, de Jorge Gomes Miranda (Porto, 1965), aqui na sua versão completa:


QUATRO MENSAGENS DEIXADAS NO TELEMÒVEL

“Dr_______________
Muito bom dia, é com alegria que o informo que,
num sorteio realizado esta manhã, foi o feliz
contemplado com um serviço de jantar
de 32 peças.
Só terá de ter a maçada de o vir buscar esta noite
pelas 20 horas ao Hotel Ipanema.”

#

“Porra, J_______________,
tens sempre o telemóvel desligado
quando preciso de ti.
Fiz asneira outra vez e a__________
saiu de casa com os miúdos.
Vê se me telefonas ainda hoje.”

#

“Olá, sou eu (silêncio)
Quero dizer (silêncio)
Tudo o que quero dizer, (silêncio)
Não sei (silêncio)
Tudo o que quero dizer levaria
mais tempo do que aquele que tenho
aqui.
Mas há coisas que não queremos ouvir
(silêncio).”

#

“Fala do Laboratório de Análises Clínicas,
Tenho aqui nas mãos o envelope
com o resultado das suas análises.
Quer que o envie por correio ou
passará por cá para buscá-las?
Informe-me da sua decisão.”



Não queria de modo algum limitar a discussão que se seguirá à estafada dicotomia Forma/Conteúdo. Mas a verdade é que a Forma em questão – será ao menos isto consensual? – é a de um poema: existe um título, existem estrofes onde os versos se dobram pela técnica do enjambement, existem pausas e silêncios brancos, e existe - notem bem - todo um programa para o poema que o torna próximo, na sua diversidade de exemplos, das técnicas de colagem e de montagem cinematográfica à maneira, por exemplo, de certas instalações de vídeo. Não estou ainda a discutir a oportunidade cronológica do poema quando comparado com a poesia internacional. Limito-me a tentar provar porque razão o texto em questão é... poesia. Consigo, todavia, entender que será no Conteúdo que o verniz estala. Ora é precisamente aí que me parece que Jorge Gomes Miranda – cuja obra poética está muito longe de se resumir a este “tipo” de poemas, façamos-lhe justiça – opera o tal trabalho de linguagem essencial a "isso" a que chamamos poema. Senão vejamos: as situações esboçadas nos diversos momentos do texto são intrinsecamente contemporâneas: num primeiro momento, desenha-se um apelo directo ao consumo, tão comercial quanto enganador, à maneira dos vendedores de time sharing, uma das pragas modernas do consumo; nos segundo e terceiro momentos, duas situações distintas de relações interpessoais - nem por isso felizes como compete à celeridade e desengano dos tempos modernos, - esboçam uma ameaça de divórcio e um profundo desencontro amoroso ; no quatro e último momento, é clara a intenção de sugerir uma situação dúbia de saúde. Cada um dos leitores vê-se assim tentado – confessem lá… - a esboçar o fio de uma narrativa que possa unir estes quatro momentos e que permita chegar "à história toda” da vida (urbana?) da persona literária a quem Jorge Gomes Miranda decidiu atribuir a propriedade daquele telemóvel. Um bom exercício de interpretação para cada leitor. Isto não elimina ou anula qualquer outro género de poesia. Apenas acrescenta. Mas as “vagas” semelhanças "disto" com um poema não se esgotam por aqui. Além da linguagem – coloquial, é certo, mas também tensa, elíptica e fortemente alusiva – e da interpretação, o texto tem também - hellás! - mistério, tão do agrado da vontade críptica caracteristica da poesia: o tipo será médico ou advogado? Economista ou "dr"? Dr. J. é, ficamos depois a saber. Mas quem seria o seu amigo e o que terá feito à mulher? Uma facadita no matrimónio? Que capacidade terá o Dr. J. para dar conselhos amorosos se ele próprio experimenta as suas próprias dificuldades? E porque terá feito análises ao sangue? Sentir-se-ía doente? Num contexto amoroso atribulado, será licito supôr que possa estar infectado com o HIV? Alguns continuarão a desgostar desde poema pela crua contemporaneidade que retrata, de tão horrível que ela é, porque é hiper-realista e reduz o mundo ao grau zero de lirismo. Eu revejo-me nela como leitor pela sua forma crua e hiper-realista de transportar a contemporaneidade que habito para a escrita. E um dia mais tarde, isso vai ser mais visível ainda. Quem quiser dizer alguma coisa, levante o dedo e fale na sua vez...


Sem comentários: