domingo, abril 04, 2010

VASCO GRAÇA MOURA acerca de FEDERICO GARCÍA LORCA

«Tudo somado, eu iria para o “Llanto por Ignacio Sanchéz Mejías”, do Lorca, ou para o terceiro andamento do texto, se o todo for julgado demasiado longo. A razão é simples: é um dos grandes poemas trágicos do século XX, obra de um "diestro" da palavra poética, e põe em presença o homem, as suas capacidades de razão, de sensibilidade e de coragem, a enfrentar a fúria bruta da irracionalidade numa coreografia da morte e do destino em quatro andamentos de extraordinária musicalidade, com o "basso ostinato" do primeiro, a toada de romanceiro do segundo, a meditação fúnebre do terceiro e a errância melancólica dos sentimentos e da memória do quarto.»


PRANTO POR IGNACIO SANCHÉZ MEJÍAS


(tradução de Vasco Graça Moura, em “Garcia Lorca: o Romanceiro e o Pranto”, Lisboa, Quetzal, 1998)

1

A colhida e a morte


Davam cinco da tarde.
Davam as cinco em ponto dessa tarde.
Um moço trouxe uma toalha branca
davam cinco da tarde.
Uma seira de cal já preparada
davam cinco da tarde.
Tudo o mais era a morte e só a morte
davam cinco da tarde.

O vento fez voar os algodões
davam cinco da tarde.
E o óxido semeou cristal e níquel
davam cinco da tarde.
Já lutavam a pomba e o leopardo
davam cinco da tarde.
E a coxa com uma haste desolada
davam cinco da tarde.
Começaram os dobres do bordão
davam cinco da tarde.
As campanas de arsénico e o fumo
davam cinco da tarde.
Pelas esquinas grupos de silêncio
davam cinco da tarde.
E o touro só de coração ao alto!
davam cinco da tarde.


2

O sangue derramado


Que não quero vê-la!

Dizei à lua que venha,
que eu não quero ver do sangue
de Ignacio a mancha na arena.

Que não quero vê-la!

A lua de par em par.
cavalo de nuvens quietas,
e a praça cinza do sonho
com salgueiros nas barreiras.

Que não quero vê-la!
Que a lembrança se me queima.
Ide avisar os jasmins
em sua alvura pequena!

Que não quero vê-la!

A vaca do velho mundo
passa a língua da tristeza
sobre um focinho de sangues
derramados pela arena,
e os touros de Guisando,
quase morte e quase pedra,
mugiram como dois séculos
fartos de pisar a terra,
Não.
Que não quero vê-la!

Pelos degraus sobe Ignacio,
toda a morte às costas leva.
Buscava o amanhecer
e o amanhecer não era.
Busca o seu formoso corpo
e encontra a sangria aberta.
Ah, não me digais que a veja!
Não quero sentir o jorro
em que a força desalenta;
esse jorro que ilumina
os palanques e rebenta
no veludinho e no couro
de uma multidão sedenta.
Quem me grita a mim que assome?
Ah, não me digais que a veja!

Não se fecharam seus olhos
quando viu os cornos cerca,
mas então as mães terríveis
levantaram a cabeça.
E através das ganadarias
houve um ar de vozes secretas
que gritavam a touros celestes,
maiorais de uma pálida névoa.

Não houve príncipe em Sevilha
a poder pedir-lhe meças,
nem espada qual sua espada,
nem coração tão deveras.
Como um rio de leões
a sua força soberba,
e como um torso de mármore
a desenhada prudência.
Um ar de Roma andaluza
o dourava na cabeça
em que o seu riso era um nardo
de sal e de inteligência.
Que mor toureiro na praça!
Que serrano mor na serra!
Que brando com as espigas!
nas esporas que dureza!

E que terno com o orvalho!
Que deslumbrante na feira!
Que tremendo com as últimas
bandarilhas só de treva!


Porém já dorme sem fim.
Já os musgos e a erva
abrem com dedos seguros
a flor da sua caveira.
E o seu sangue já lá vem cantando:
cantando pelos plainos e lameiras,
resvalando por hirtos cornos frios,
vacilando sem alma pela névoa,
tropeçando nos cascos aos milhares
como uma língua triste, escura, espessa,
para formar um charco de agonia
junto ao Guadalquivir lá das estrelas.

Oh branco muro de Espanha!
Oh negro muro de pena!
Oh sangria atroz de Ignacio!
Oh rouxinol dessas veias!
Não.
Que não quero vê-la!

Que não há cálice que a contenha,
que não há andorinhas pra bebê-la,
não há geada de uma luz que a esfrie,
não há canto nem dilúvio de açucenas,
não há cristal que a cubra já de prata.
Não.
Eu não quero vê-la!


3

Corpo presente


A pedra é uma fronte por onde os sonhos gemem
sem terem água curva nem ciprestes gelados.
A pedra é uma espalda para levar o tempo
com árvores de lágrimas e tiras e planetas.

Vi chuvas pardas correrem para as ondas
erguendo os ternos braços feitos crivo,
para não serem caçadas pela pedra alongada
que desata seus membros sem se empapar de sangue.

Porque a pedra recolhe sementes, nevoeiros,
os ossos das calhandras e lobos de penumbra;
mas ela não dá sons, nem dá cristais, nem fogo,
só praças e mais praças e outras praças sem muros.

Sobre a pedra já está Ignacio o bem-nascido.
Já se acabou: que foi? Olhai sua figura:
veio a morte cobri-lo de pálidos enxofres
e pôs-lhe uma cabeça de obscuro Minotauro.

Já se acabou. A chuva penetra em sua boca.
O ar enlouquecido esvaziou-lhe o peito,
e o Amor, empapado com lágrimas de neve,
vai-se aquecer no cimo das ganadarias.

Que dizem? Um silêncio com fedor repousa.
Estamos com um corpo presente que se esfuma,
com uma forma clara que teve rouxinóis
e que vemos encher-se de buracos sem fundo.

Quem enruga o sudário? Não é verdade o que diz!
Nem canta aqui ninguém, nem chora no recinto,
nem espeta as esporas, nem espanta a serpente:
aqui não quero mais do que os olhos redondos
para ver esse corpo sem possível descanso.


Eu quero ver aqui os homens de voz dura.
Os que domam cavalos e dominam os rios:
os homens a quem soa o esqueleto e cantam
com uma boca cheia de sol e pedernais.

Aqui eu quero vê-los. Diante desta pedra.
Diante deste corpo com as rédeas quebradas.
Eu quero que me mostrem onde está a saída
para este capitão atado pela morte.

Eu quero que me ensinem um pranto como um rio
que tenha doces névoas e as margens mais profundas,
para levar o corpo de Ignacio e que se perca
sem escutar o duplo resfolegar dos touros.

Que se perca na praça redonda lá da lua
que finge de menina dolente rés imóvel;
que se perca na noite sem música dos peixes
e no branco daninho do fumo congelado.

Não quero que lhe tapem a cara com um lenço
para que se acostume à morte que assim leva.
Vai-te, Ignacio: Não sintas esse quente bramido.
Dorme, voa, repousa: que também morre o mar!


4

Alma ausente



Não te conhecem touro nem figueira,
nem cavalos nem formigas do teu lar.
Não te conhece a tarde ou o menino,
porque tu estás morto para sempre.

Não te conhece a pedra no seu dorso,
nem o negro cetim onde te perdes.
Não te conhece o teu recordar mudo
porque tu estás morto para sempre.

O outono virá com os seus búzios,
uva de névoa e montes agrupados,
mas ninguém quererá fitar teus olhos
porque tu estás morto para sempre.

Porque tu estás morto para sempre,
como todos os mortos que há na Terra,
como todos os mortos que se esquecem
num monturo de cães que se apagaram.

Ninguém que te conheça. Não. Mas eu te canto.
Eu canto para já teu perfil e tua graça.
A madurez insigne do teu conhecimento.
Tua apetência de morte e o gosto de sua boca.
A tristeza que teve tua valente alegria.

Tardará muito tempo em nascer, se é que nasce,
um andaluz tão claro, tão rico de aventura.
Eu canto sua elegância com palavras que gemem
e recordo uma brisa triste pelas oliveiras.


§


Vasco Graça Moura (Foz do Douro, Porto, 3 de Janeiro de 1942) é escritor e político. Licenciado em Direito, pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, foi advogado até 1983, tendo optar pela carreira literária que o havia de confirmar como um nome central da poesia portuguesa da segunda metade século XX. A par da poesia, Graça Moura está na escrita como dramaturgo, ensaísta, tendo traduzido Dante Alighieri, William Shakespeare, Petrarca, Jean Racine, François Villon, Frederico Garcia Lorca e Rainer Maria Rilke, entre outros. Recebeu o Prémio Pessoa em 2005 e o Prémio Vergílio Ferreira em 2007. Foi distinguido com o Prémio de Poesia do PEN Clube Português (1994) e da Associação Portuguesa de Escritores (1997), a Coroa de Ouro do Festival de Poesia de Struga (Macedónia, 2004). Recebeu a Medalha de Ouro da cidade de Florença desde 1998. Em Abril de 2008, é distinguido com o Prémio de Tradução 2007 do Ministério da Cultura italiano, que distingue anualmente o melhor tradutor estrangeiro de obras italianas, por decisão unânime do júri. Juntamente com a professora e crítica literária Maria Alzira Seixo, é um dos mais conhecidos opositores à ratificação por Portugal do proposto Acordo Ortográfico defendendo que o Acordo Ortográfico serve interesses políticos e económicos do Brasil, pretende abrasileirar a ortografia de muitas palavras do português europeu e inflige lesões irreversíveis na língua portuguesa. É co-autor e primeiro signatário da Petição Manifesto em Defesa da Língua Portuguesa Contra o Acordo Ortográfico, que desde 2 de Maio de 2008 recolheu mais de 110 000 assinaturas.


Leia mais no Poesia Ilimitada sobre Vasco Graça Moura,
aqui e aqui.





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