(este post é para Hugo Pinto Santos)
ADAM ZAGAJEWSKI (Lvov, 1945) é provavelmente o mais importante poeta polaco da actualidade, assunto para dois anteriores posts (aqui e aqui), no Poesia Ilimitada. Os poemas que se seguem são versões das traduções para inglês de Clare Cavanagh (professora de Línguas e Literaturas eslavas na Northwestern University), retirados do último livro de Adam Zagajewski em inglês, “Unseen Hand” (Farrar, Strauss and Giroux, New York, 2011), onde os seus temas favoritos regressam (o peso e a ausência de memória; a história, em particular, o tema do holocausto; a sua relação com o pai; lugares e cidades europeias; a sua particular relação com o Cristianismo; a natureza, a pintura e a música), desta feita, porém, com um olhar que me parece mais americano e menos europeu, se comparado com "Eternal Enemies", o seu anterior livro; ou dito talvez de outra forma: um olhar europeu, ainda, mas tomado pela distância, fruto talvez da sua vivência e vida académica em Chicago. O poeta polaco está particularmente no seu elemento quando escreve, em diversos poemas, sobre os momentos de alegria ou átimos de felicidade que inesperadamente ocorrem no imo do quotidiano, mas que súbitamente se desvanecem pela ocorrência de um elemento perturbador. Quatro poemas, com a devida vénia:
AUTO-RETRATO NUM AVIÃO
em classe económica
Dobrado como um embrião,
esmagado num assento estreito,
tento recordar
o aroma do feno recém-cortado
quando em Agosto as carroças de madeira
descem dos prados de montanha,
baloiçando pelas estradas de terra
e o condutor grita
como os homens sempre gritam quando entram em pânico
- gritaram dessa forma na Ilíada
e nunca mais se silenciaram desde então,
nem durante as Cruzadas,
nem mais tarde, muito mais tarde, próximo de nós,
quando ninguém os escutou.
Estou cansado, penso naquilo o que
não pode ser pensado - no silêncio que reina
nas florestas quando as aves dormem,
sobre o final próximo do verão.
Mantenho a cabeça entre as mãos
como se a protegesse da aniquilação.
Visto de fora, sem dúvida que
pareço imóvel, quase morto,
resignado, merecendo simpatia.
Mas não é assim - sou livre,
talvez mesmo feliz.
Sim, seguro a pesada cabeça
em minhas mãos,
mas dentro nasce um poema.
§
27 DE JANEIRO
Dia gelado. Um sol de inverno. Branco vapor.
Mas nesta sexta-feira não sabíamos
o que celebrar, e o que chorar –
o Dia Memorial do Holocausto
ou o aniversário de Mozart.
Nossa memória ficou perplexa.
A imaginação perdeu o rumo.
No parapeito da janela, uma vela chorou
(fomos convidados a acender velas),
mas a suave música do jovem Mozart
chegou até nós pelos altifalantes, em estilo rococó,
a época das asas de prata e não dos cabelos grisalhos
que conhecíamos de Auschwitz,
idade dos figurinos, e não da nudez,
da esperança, e não do desespero.
Nossa memória ficou perplexa,
a imaginação cresceu, perdida em pensamentos.
§
O JARDIM BOTÂNICO
No Jardim Botânico de Cracóvia
deparei-me com uma árvore Asiática
com o nome de Metasequoia Chinesa – uma bela árvore
com folhas agulha achatadas.
Mas porquê metasequóia – e não apenas uma sequóia normal?
A metasequóia cresce além de si mesma?
Será que se eleva acima das outras árvores?
Até mesmo as plantas começaram a recorrer
ao misterioso jargão
de certos sábios académicos?
§
AINDA VITA CONTEMPLATIVA
No comboio para Varsóvia
Pode acontecer em qualquer lugar, por vezes no combóio,
quando estou muito longe: subitamente a porta
abre e figuras esquecidas entram,
o meu sobrinho, que já não anda por cá,
mas que se aproxima, alegre, sorrindo,
e um determinado poeta chinês que amava
a música e as folhas das árvores no outono,
estudantes de teologia de Córdoba, ainda sem barba,
emergem de nenhures e saltam à vista,
retomando o debate sobre os atributos de Deus,
e a esplêndida vida surge como uma queda de água na primavera,
até que finalmente um telemóvel soa, inoportuno,
depois outro, e um terceiro, e todo este mundo excelente, estranho
se contraí e desaparece, exactamente como um rato de campo,
que, apercebendo-se do perigo, se retira habilmente para
o seu apartamento secreto.
ADAM ZAGAJEWSKI (Lvov, 1945) é provavelmente o mais importante poeta polaco da actualidade, assunto para dois anteriores posts (aqui e aqui), no Poesia Ilimitada. Os poemas que se seguem são versões das traduções para inglês de Clare Cavanagh (professora de Línguas e Literaturas eslavas na Northwestern University), retirados do último livro de Adam Zagajewski em inglês, “Unseen Hand” (Farrar, Strauss and Giroux, New York, 2011), onde os seus temas favoritos regressam (o peso e a ausência de memória; a história, em particular, o tema do holocausto; a sua relação com o pai; lugares e cidades europeias; a sua particular relação com o Cristianismo; a natureza, a pintura e a música), desta feita, porém, com um olhar que me parece mais americano e menos europeu, se comparado com "Eternal Enemies", o seu anterior livro; ou dito talvez de outra forma: um olhar europeu, ainda, mas tomado pela distância, fruto talvez da sua vivência e vida académica em Chicago. O poeta polaco está particularmente no seu elemento quando escreve, em diversos poemas, sobre os momentos de alegria ou átimos de felicidade que inesperadamente ocorrem no imo do quotidiano, mas que súbitamente se desvanecem pela ocorrência de um elemento perturbador. Quatro poemas, com a devida vénia:
AUTO-RETRATO NUM AVIÃO
em classe económica
Dobrado como um embrião,
esmagado num assento estreito,
tento recordar
o aroma do feno recém-cortado
quando em Agosto as carroças de madeira
descem dos prados de montanha,
baloiçando pelas estradas de terra
e o condutor grita
como os homens sempre gritam quando entram em pânico
- gritaram dessa forma na Ilíada
e nunca mais se silenciaram desde então,
nem durante as Cruzadas,
nem mais tarde, muito mais tarde, próximo de nós,
quando ninguém os escutou.
Estou cansado, penso naquilo o que
não pode ser pensado - no silêncio que reina
nas florestas quando as aves dormem,
sobre o final próximo do verão.
Mantenho a cabeça entre as mãos
como se a protegesse da aniquilação.
Visto de fora, sem dúvida que
pareço imóvel, quase morto,
resignado, merecendo simpatia.
Mas não é assim - sou livre,
talvez mesmo feliz.
Sim, seguro a pesada cabeça
em minhas mãos,
mas dentro nasce um poema.
§
27 DE JANEIRO
Dia gelado. Um sol de inverno. Branco vapor.
Mas nesta sexta-feira não sabíamos
o que celebrar, e o que chorar –
o Dia Memorial do Holocausto
ou o aniversário de Mozart.
Nossa memória ficou perplexa.
A imaginação perdeu o rumo.
No parapeito da janela, uma vela chorou
(fomos convidados a acender velas),
mas a suave música do jovem Mozart
chegou até nós pelos altifalantes, em estilo rococó,
a época das asas de prata e não dos cabelos grisalhos
que conhecíamos de Auschwitz,
idade dos figurinos, e não da nudez,
da esperança, e não do desespero.
Nossa memória ficou perplexa,
a imaginação cresceu, perdida em pensamentos.
§
O JARDIM BOTÂNICO
No Jardim Botânico de Cracóvia
deparei-me com uma árvore Asiática
com o nome de Metasequoia Chinesa – uma bela árvore
com folhas agulha achatadas.
Mas porquê metasequóia – e não apenas uma sequóia normal?
A metasequóia cresce além de si mesma?
Será que se eleva acima das outras árvores?
Até mesmo as plantas começaram a recorrer
ao misterioso jargão
de certos sábios académicos?
§
AINDA VITA CONTEMPLATIVA
No comboio para Varsóvia
Pode acontecer em qualquer lugar, por vezes no combóio,
quando estou muito longe: subitamente a porta
abre e figuras esquecidas entram,
o meu sobrinho, que já não anda por cá,
mas que se aproxima, alegre, sorrindo,
e um determinado poeta chinês que amava
a música e as folhas das árvores no outono,
estudantes de teologia de Córdoba, ainda sem barba,
emergem de nenhures e saltam à vista,
retomando o debate sobre os atributos de Deus,
e a esplêndida vida surge como uma queda de água na primavera,
até que finalmente um telemóvel soa, inoportuno,
depois outro, e um terceiro, e todo este mundo excelente, estranho
se contraí e desaparece, exactamente como um rato de campo,
que, apercebendo-se do perigo, se retira habilmente para
o seu apartamento secreto.
1 comentário:
Grata pela partilha, saio enriquecida com mais uma descoberta.
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