sábado, fevereiro 26, 2011

CHARLES SIMIC (3)

É um dos meus poetas americanos de eleição, dos que estão vivos, o meu candidato ao Nobel (com Ashbery), pela consistência da sua poética. Natural da Jugoslávia, CHARLES SIMIC nasceu em Belgrado (Sérvia) em 1938, tendo viajado para os Estados Unidos aos 16 anos para ir ter com o pai, em 1954. Motivo para dois posts (aqui e aqui), no Poesia Ilimitada, na poesia de Charles Simic nunca é evidente onde termina a inocência e começa o ominoso. Simic tem um talento natural para apontar o detalhe que ilumina os bons poemas e desequilibra as coisas comuns, numa poética onde coexistem, lado a lado, o real e o surreal, o riso (irónico) e o lado mais obscuro da condição humana. Numa recensão crítica da People, escreve-se que Simic enche os seus poemas com as coisas que «an isomniac notices on the ceiling». Qualquer boa selecção da sua poesia corrobora imediatamente essa ideia. Eis quatro poemas (apenas), por mim traduzidos do inglês, da escolha pessoal que o poeta encetou para a Faber and Faber em 2004 (“Selected Poems 1963-2003”). Comecei por traduzir o triplo mas divulgo apenas quarto, por óbvias razões de direito autoral: o poema “Pedra”, porque me recorda muito o poema de Wisława Szymborska “Conversa com a pedra”, sublinhando assim que entre os grandes autores, ou eles se furtam entre si com elegância, ou passam pelos mesmos nichos e processos de pensamento ao longo de suas vidas literárias; “Prodígio”, porque me lembra as primeiras coisas do José Tolentino Mendonça em “Os Dias Contados”, no equilíbrio lírico da sua inocência; “Austeridades”, porque é um prodígio de economia, elipse e síntese (na versão inglesa, evidentemente), três das mais fortes qualidades que a poesia (que defendo) deve ter; e finalmente, “O Espantalho”, uma extraordinária analogia acerca da sexualidade na terceira idade, o meu preferido dos quatro. Aqui estão:

PEDRA

Entrar dentro de uma pedra
Seria esse o meu caminho.
Deixar outrem tornar-se pombo
Ou rilhar com dentes de tigre.
Sou feliz por ser uma pedra.

Por fora, a pedra é um enigma:
Ninguém sabe como o desvendar.
Dentro, porém, deve ser fresca e silenciosa
Mesmo que uma vaca a calque com todo o seu volume,
Mesmo que uma criança a atire para um rio;
A pedra afunda-se, lenta, imperturbavelmente
Até ao fundo do leito
Onde os peixes vêm bater na pedra
E escutar.

Eu vi as faíscas voando
Quando duas pedras são friccionadas,
Talvez então não seja escuro, apesar de tudo, lá dentro;
Talvez exista uma lua brilhando
Desde algures, como se por trás de uma colina –
Apenas a luz suficiente para distinguir
Os estranhos escritos, as cartas astrais
Nas paredes de dentro.

(1971)

§



PRODÍGIO

Cresci dobrado sobre
um tabuleiro de xadrez.

Adorava a palavra check-mate.

Todos os meus primos pareciam preocupados.

Era uma pequena casa
perto de um cemitério romano.
Aviões e tanques
sacudiam o vidro das janelas.

Um professor de astronomia reformado
ensinou-me a jogar.

Isto deve ter sido em 1944.

No tabuleiro que usávamos,
a tinta estava quase lascada
nas partes pretas.

O Rei branco estava em falta
e teve que ser substituído por.

Disseram-me, mas eu não acredito
que nesse verão testemunhei
homens pendurados em postes telefónicos.

Lembro-me da minha mãe
vendar-me muito os olhos.
Ela tinha um modo de enfiar a minha cabeça
de repente sob o seu casaco.

Disse-me um professor que no xadrez,
os mestres também jogam de olhos vendados,
os maiores deles em vários tabuleiros
ao mesmo tempo.

(1980)

§



AUSTERIDADES


Da carcaça
De meio pão
De pão preto,
Fizeram a cabeça de uma criança.

Criança, disseram,
Não temos nada para os olhos,
Nada que sobre para as orelhas
E o nariz.

Somente uma faca
Para fazer a fenda
Onde a tua boca
deveria ser.

Podes sorrir,
Podes comer,
Cuspir migalhas
Para os nossos rostos.

(1982)

§



O ESPANTALHO


Deus refuta mas o diabo não.

Os tomates deste ano são algo de se ver.
Trinca-os fundo, Martha,
Como farias numa maçã madura.
Após cada dentada junta um pouco de sal.

Se os sucos correrem pelo teu queixo abaixo
Até aos teus seios nus,
Dobra-te sobre a banca da cozinha.

Daí poderás ver o teu marido chegar
A um ponto morto no descampado vazio
Frente a um dos seus sombrios pensamentos
Esticando os braços como um espantalho.

(1990)

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