PALAVRAS SÃO IMAGENS SÃO PALAVRAS
Sérgio Godinho
Quetzal
Editores, Novembro 2021
128 páginas
Esquecemo-nos muitas vezes de que a poesia
começou por ser uma arte oral, plena de repetição e mecanismos mnemónicos que
fixavam Cosmogonias, de civilização em civilização. O mais recente livro de
poemas de Sérgio Godinho lembra-nos a
cada página como a música pode acontecer na poesia, sem o auxílio externo, digamos assim, de instrumentos musicais.
O ritmo base de um poema pode ser lento ou rápido, ou mesmo colocado em suspenso por pausas, silêncios, espaços em branco, figuras de sintaxe como o polissíndeto que abrandam o verso; estamos no fundo a falar de percussão; pode ser acelerado através da utilização do assíndeto ou de enjambements, por exemplo, que não autorizam que o verso termine no final da linha projectando-o com a ansiedade própria da poesia contemporânea para a linha seguinte, ou reforçando-o com numerosos tipos de repetições como anáforas, gradações, refrões, enumerações, paralelismos. Onde entra então a melodia – que corresponderia à guitarra, ao piano, à voz – sobre este ritmo base que os poetas criam, complementando-o harmonicamente?
A língua portuguesa é extraordinariamente eufónica. Sobre aquela percussão de base sobrepõem-se como elementos harmónicos as figuras de Som e de Harmonia que Sérgio Godinho tanto aprecia e usa como sucessivas aliterações, assonâncias, paranomásias e outros jogos verbais como trocadilhos, onomatopeias, a própria rima. Tudo isso existe neste livro. Dir-se-ia que uma harmonia sonora atravessa a respiração e a pulsação de cada poema, a maior parte das vezes de forma aberta, em versos brancos tantas vezes curtos e ansiosos, ou em versos projectivos que são aqueles com os quais os poetas compõem quando optam por ouvir o seu pulso, a sua respiração.
Tudo isto constituiria já uma experiência de leitura única se ficássemos por aqui. Mas a poesia é também dicção e imagem. De que falam estes poemas? Naturalmente que de um quotidiano que lhe é próximo, ternurento, melancólico, solitário, a tempos hermético e sempre transfigurado. As imagens fotográficas que surgem com os poemas não se substituem às imagens que os poemas criam, antes são o gatilho que cria uma coisa terceira, o diálogo alusivo e complementar entre as duas artes, escrita e fotografia.
O detalhe, a biografia, a geografia e seus lugares, a violência sobre o corpo, a lombada dos livros como coluna vertebral, a sua experiência enquanto músico, a pé ou de comboio, na A23, as viagens. Estes são poemas que a nível imagético retém para si uma dose significativa do enigma e do mistério do mundo, no que não é dito, libertando-os verso a verso como faz um bom contador de histórias, calando uma larga margem para que os complete a imaginação. Um belo livro.
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