quarta-feira, abril 02, 2014

INGMAR HEYTZE


INGMAR HEYTZE (Utrecht, 16 de Fevereiro de 1970) começou a escrever poesia aos 15 anos. Cursou Linguas e Literaturas Modernas na sua cidade natal, especializando-se em Comunicação. Faz parte de um grupo de escritores e jornalistas da cidade de Utrecht que tem vários poemas espalhados em muros e paredes da cidade, apelidado de Utrecht Maffia. Este grupo reúne-se regularmente em tertúlia no Café-Teatro De Bastaard. Heytze começou a sua carreira de poeta declamando em palco, aquilo a que na Holanda se chama podiumkunst.  No início, notava-se muito a influência dessa forma de fazer poesia: uma poesia de fácil acesso em termos de vocabulário, por vezes ritmada, abordando variados assuntos, mesmo os mais absurdos, a tempos de forma bombástica e, regularmente com um toque de humor. Essa nota de humor é, segundo o próprio poeta, uma maneira de se distinguir dos seus pares e “a melhor figura de estilo que existe. Sem humor não há arte. Em primeira instância é gozar consigo mesmo”, diz ele numa entrevista concedida à revista cultural 8 weekly. Entretanto, a sua obra tornou-se mais madura, embora se continue a observar um certo elemento de surpresa e irreverência, muitas vezes sob a forma de um punch no último verso. Incide actualmente na observação e na análise de situações ou sentimentos. A acção centra-se em Utrecht (cidade que praticamente não abandona por fobia de viajar), tendo sido o primeiro ‘poeta oficial’ da cidade. Em 2008 foi-lhe atribuído o prémio C.C.S. Crone para estímulo a jovens escritores. A obra de Ingmar Heytze é extensa e variada. Além de continuar a escrever poesia e declamar em público, trabalha para vários jornais e revistas como free-lancer, colabora com outros poetas e escritores, e desde 2009 faz parte de uma banda intitulada Asfaltfeeë, na qual também participam mais alguns artistas conceituados.
Os sete poemas que se seguem foram traduzidos do livro Ademhalen onder de maan (Respirar sob a lua, 2011) por Maria Leonor Raven-Gomes, a quem também se deve a nota introdutória. Muito obrigado, Leonor!
 
 
O ÚLTIMO HOMEM A FALAR UBYKH

Por vezes, no decorrer dos últimos meses,
ele pensava numa palavra
e tentava lembrar-se da árvore ou da espécie de sapo
que ela nomeava:
a verdadeira árvore, sapo ou emoção
e não o sinónimo numa outra língua,
a língua que lhe levara os filhos e a luz da montanha,
os túmulos que ele varria e cuidava, as canções dos casamentos.
Enquanto anos de silêncio se conjugavam à soalheira
ele ficava no quintal
e sussurrava o nome de um pássaro
na sua língua materna,
enquanto memórias de neve e dias de feira,
das mãos do seu pai, do odor a tamarindo
se retiravam em palavras puídas:
o azul da infância dobrado como um lençol
e arrecadado.
Nada do que ele dizia era recordado; nada do que fazia
facto ou lenda,
na praça da aldeia.
Contudo reteriam mais tarde a palavra
que disse nessa manhã, pouco antes de morrer:
um nome para a morte, talvez,
ou para a erva dos prados,
ou, surgida à beira do pensamento,
uma outra palavra que havia quando ele era pequeno,
uma palavra raramente utilizada, embora existisse
para tudo o que ninguém conseguia recordar.
John Burnside
 
§
 
PRIMEIRA MEDITAÇÃO

És a única árvore no mundo que recusa
crescer em direcção à luz. Em vez disso enterras-te
com raízes cada vez mais profundas,
camada de terra após camada, tempo passado,
rumo ao calor, e calculas já estar a meio caminho.
Depressa deixas de sentir as toupeiras, minhocas
ou raízes de outros seres, tetra-cego das cavernas
na sua noite infinita. O frio é cada vez maior.
Não sabes se consegues crescer a distância necessária
para encontrares o magma. Estás só, mas a caminho.
 
§
 
LEBRES

As lebres são as mais bonitas, diz ela.
As lebres estão prontas para correr desde que nascem:
patas, olhos e orelhas, tudo funciona desde o início.
Não há animal mais camuflado do que a lebre.
Uma lebre só se veste de prado,
na distância que a separa de ti.
Uma lebre está nua sob o céu.
E os ouriços-cacheiros, pergunto, como são os ouriços?
Os ouriços-cacheiros, diz ela, são míopes, lentos,
sempre a vasculhar nos arbustos, como pequenos trapeiros.
Também são bonitos, mas diferentes, acanhados.
A maneira como eles tentam encobrir
a brandura num forte de espinhos.
Como nunca conseguem
ocultar-se  em si mesmos.
As lebres, diz-me depois de uns momentos,
as lebres são ouriços do avesso.
 
§
 
MARKET MAKER

A única coisa que posso fazer por si, diz o homem
atrás dos computadores, é premir um botão a tempo
porque tudo tem que desaparecer, desaparecer e desaparecer.
E quase ninguém sabe quando é que na realidade
ele preme um gatilho. O passado foi à falência,
o futuro não me interessa; a verdade
flui em números cinzentos pelas minhas retinas,
um piscar de olhos e a próxima apresenta-se.
Os dias não são bons ou maus, vivo indiferente
a onde paro e ao que ponho em movimento.
É assim que eu vejo as coisas: piloto um navio,
o radar pia para onde. O mar? Nunca olhei para ele.
Posso chamar-lhe papá? Tenho biliões de pais e hoje
desapontei-os a todos. Não chore. Prefiro que
me conte uma história para eu conseguir dormir.
 
 
§
 
ÀS VEZES ESTRELAS

Os vizinhos da esquerda, ar reformado
sobre um telhado entre paredes exteriores.
À direita, uma mulher que fala com a televisão
e todas as noites adormece antes das dez.
Debaixo: homem que acorda assustado
se algures alguém abre uma torneira.
Por cima: pombos. De vez em quando uma andorinha.
Às vezes estrelas. Mas mais frequentemente
a trovoada me visita.
 
 
§
 
SEGUNDA MEDITAÇÃO

Alguém te sopra como se fosses um dente-de-leão.
Nua, flutuas no escuro e não sabes –
o que é escuridão, ou luz, ou tu, ou existência.
E no entanto as sementes dançam à tua volta,
filamentos a caminho do nada. Talvez um caia em terra fofa.
A probabilidade de germinar é extraordinariamente pequena,
mas tudo flutua. Tudo junto és tu.
 
§
 
O QUADRO ELECTRÓNICO

Vi-te pela primeira vez debaixo do quadro electrónico.
Que se agitava e movia como uma roda da sorte;
novos horários, comboios extra, locais para onde viajar.
Tinhas ficado à espera, mesmo sem saberes do quê,
disseste-mo essa noite sob as estrelas que
observávamos através da janela do sótão.
Como se o fim estivesse adaptado à forma
contida nele desde o início, veio uma manhã
em que te foste embora. Murmuraste ainda algo
sobre cometas que não sabem onde a trajectória os leva. 
Levei-te à estação. O átrio parecia agora muito maior,
a luz incidia de forma estranha – vi-te pela última vez
debaixo do quadro electrónico, que matraqueava destinos
como se o tempo tivesse ficado suspenso. Olhaste para cima,
escolheste um cais longínquo. A escada rolante engoliu-te.
Ninguém se voltou para olhar para trás.

3 comentários:

José María Souza Costa disse...


Olá.
Passeando por aqui, para desejar-te um período Pascal com: alegria, Saúde, Paz, e muita Reflexão.
A Família, continua e continuará, sendo a Sustentação deste Grande Arco Humano, que chamamos de Relacionamentos.
Um abraço fraterno.

Pablo Treuffar disse...

Meu caro digitador de palavras
Seus escritos foram notados
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