HORÁCIO
Arte Poética (Epistola ad Pisones, c. 14-8 a. C.)
Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2012
por JOÃO PAULO SOUSA
Quem tiver presente na memória a passagem de Raul Miguel Rosado Fernandes
pela política há-de recordar-se de um homem determinado, com algum sentido de
humor, embora associado a um ou outro momento de alguma truculência, na
aparência pouco compatível com um cuidado tradutor de Tucídides e de Horácio.
Ora, a lembrar-nos esse rigoroso trabalho, a Fundação Calouste Gulbenkian
colocou recentemente nas livrarias uma nova edição (a quarta), revista e
aumentada, da Arte Poética do autor latino. Na verdade, esta tradução de
Rosado Fernandes, em assinalável edição bilingue, comporta, para além da
célebre Epístola aos Pisões (que a tradição entendeu renomear mais em
consonância com o assunto de que se ocupa), três outros textos: a Sátira IV do
Livro I, a Epístola I do Livro II, dirigida a Augusto, e a Epístola II do Livro
II, endereçada a Floro. Se acrescentarmos o prefácio, a introdução, as abundantes
notas, a bibliografia e o índice onomástico, temos uma ideia da qualidade do
pequeno volume, que apenas fraqueja na pontuação dos textos em português (as
traduções e os outros), com demasiadas vírgulas mal colocadas ou por colocar.
Na primeira das referidas epístolas, Horácio (ou Quinto Horácio Flaco, de
seu nome completo, devidamente traduzido para o português contemporâneo)
defendeu o valor da obra de arte como independente do tempo histórico em que
tivesse sido produzida; ao mesmo tempo, afirmou a necessidade de um aprofundado
conhecimento técnico para se praticar a arte literária. Na outra epístola, que
talvez fosse uma resposta ao pedido de versos por parte de Floro, o autor
romano esquivou-se a essa provável solicitação com humor e audácia, mostrando a
sua indisponibilidade para escrever poemas apenas porque alguém lhe solicitava
tal, e defendeu que o importante, na verdade, consistia em produzir algo de
qualidade.
Finalmente,
na epístola que dirigiu aos Pisões – personalidades romanas cuja identificação
rigorosa e consensual ainda não foi possível –, Horácio teorizou mais
amplamente sobre literatura, e fê-lo de um modo que resistiu à passagem dos
séculos, tornando o seu texto uma referência incontornável, nem sempre bem
citada, da reflexão poética. Principiando com a defesa da unidade da obra de
arte, através do exemplo inicial da pintura de um ser híbrido, prosseguiu com a
afirmação categórica da necessidade de equilíbrio na criação artística, a que
juntou outra ideia não menos importante:
Vós, que escreveis, escolhei matéria à altura das vossas forças e
pesai no espírito longamente que coisas carregam e as que eles não podem
suportar. A quem escolher assunto de acordo com as suas possibilidades nunca
faltará eloquência nem tão-pouco ordem luzida. (pp. 109-111)
Eis aqui um tópico que tantos autores parecem esforçar-se por esquecer,
escrevendo, não de acordo com aquilo a que, provisoriamente – à falta de melhor
definição –, poderíamos classificar como verdade interior, mas em
sintonia com o que entendem ser mais próprio desse fantasma a que chamam espírito
da época, acabando assim por falsificar e arruinar irremediavelmente a sua
produção artística (e não cabe aqui discutir se quem assim procede não o faz
precisamente para esconder a inexistência de qualquer verdade interior
que pudesse sustentar uma obra de arte digna desse nome).
A este princípio de adequação soube Horácio associar a defesa da técnica
como elemento decisivo para a criação poética, assinalando desde logo a
importância de um factor que, ao longo dos séculos, tantos zombeteiramente
desprezaram:
Se não posso nem sei observar as funções prescritas e os tons
característicos dos diversos géneros, por que hei-de ser saudado como poeta?
Qual a razão por que prefiro, com falso pudor, desconhecê-los a aprendê-los? (p.
119)
A consequência que daí retirou o poeta romano é bem clara: a literatura é
um trabalho árduo, e quem disso não se convencer perde o seu tempo a compor
versos, que deles não ficará memória. Para além de recomendar que se censure
todo o poema que não tiver sido longamente retalhado e aperfeiçoado, sem que o
cansaço possa, em algum instante, justificar o desânimo do autor, Horácio
traçou uma apologia da excelência na criação literária que deveria fazer corar
de vergonha todos aqueles (e não só) que desatam a juntar frases porque lhes
ocorreu, de passagem, que tinham algo para dizer, confundindo obtusamente a
arte com esse lamentável «algo para dizer»:
Tu, (…) conserva bem na memória o que te digo: nas
coisas positivas se concebe tolerável mediania e qualquer jurisconsulto ou
advogado mediano, se não chegou à habilidade do eloquente Messala ou à ciência
de Aulo Cascélio, nem por isso deixa de ter o seu valor. Mas os poetas
medianos, esses não os admitem nem os deuses nem os homens, nem as estantes dos
livreiros. (p. 151)
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