HELDER MOURA PEREIRA
Se as Coisas não Fossem o que São
Lisboa, Assírio & Alvim, 2010
por JOÃO PAULO SOUSA
De todos os títulos de livros de Helder Moura Pereira, talvez seja este o mais programático e, em simultâneo, o que melhor sintetiza as qualidades e os defeitos desta poesia. Constituído por uma oração condicional, ele dispensa, por irrelevância, a subordinante; com efeito, se as coisas não fossem o que são, seriam naturalmente diferentes. Ao mesmo tempo, porém, compreendemos também que elas não podem deixar de ser o que são, e percebemos aqui como, com alguma subtileza, somos lançados para um universo de aceitação, mais ou menos resignada, de algo. Perguntamo-nos, no entanto, sobre o objecto dessa resignação, e a resposta, propositadamente vaga, não deixa, ainda assim, de ser explícita: as coisas. A expressão provém da linguagem oral e direcciona-nos para a aparente coloquialidade da poesia de Helder Moura Pereira, que, não por acaso, incluiu os nomes de Eliot e Larkin no título de outra das suas obras. As coisas são, de certo modo, tudo o que diz respeito aos humanos, e, segundo o título, são o que são. Ora, esta tautologia não pode aqui deixar de ser lida na vertente irónica conferida pelo facto de se tratar de um discurso em segundo grau, ou seja, consciente da posse que exerce sobre uma construção verbal alheia. A tautologia, como já foi dito e repetido, constitui uma dupla morte, da linguagem e do pensamento, ambos negados nessa repetição circular que Roland Barthes classificou como «uma ruptura raivosa entre a inteligência e o seu objecto, ameaça arrogante de uma ordem em que se deixaria de pensar» (Mitologias, Lisboa, Edições 70, 1997, p. 88). Abordá-la em segundo grau significa, então, desmontá-la, ao mesmo tempo que se nega a suposta elevação das questões que são configuradas nesta poesia. A dimensão deceptiva daí resultante está bem patente, por exemplo, no segundo poema da quinta e última secção do livro:
Sento-me no jardim, a fumar
e a olhar para o que vou deixar.
Nunca imaginei que me pudesse
acontecer uma coisa destas,
passo os dedos por objectos
que nunca tocara antes, quero
saber o nome de todas as folhas
destas flores. Se há mãos pretas
são de tinta de jornal (era no tempo
em que os jornais cheiravam
a tinta), ou então as mãos
pareciam escuras, mas não eram,
havia só uma sombra que lhes dava
de dentro da minha perspectiva
inquinada e oblíqua. Os jardins
são coisas perigosas, levam
à ausência de interrogação
sobre o sentido verdadeiro
da vida. Ah, não sabem o que é
o sentido verdadeiro da vida?
Só um momento, que já vos digo. (p. 83)
Para lá do já referido tom deceptivo imposto no final, desenham-se neste poema as principais linhas estruturantes desta obra de Helder Moura Pereira. A aparente equação narrativa inicial é o pretexto para uma reflexão sobre a passagem do tempo, que permite o alargamento semântico de um texto que recusa deixar-se cair no tom altivo e grandiloquente. É a já conhecida desconfiança pela metáfora, talvez explicável pelo medo da ausência; assim, a metonímia torna-se a figura de retórica preferida, porque há contiguidade entre as partes (a referida e a substituída). Passar os dedos por objectos nunca antes tocados é um acontecimento do domínio do concreto que aqui vem substituir a consciência abstracta da perda. Dizê-lo no poema permite, desde logo, uma sugestiva ampliação do seu sentido, ainda mais reforçada quando, como aqui se verifica, o corte dos versos contribui habilmente para esse efeito, mas convém não esquecer que o recuo permanente diante da metáfora é também a recusa de uma possibilidade que a linguagem oferece. Ao proceder-se com insistência deste modo, corre-se o risco de empurrar o discurso poético para uma monótona reiteração, a qual, no limite, poderia mesmo ser incapaz de evitar a queda na redundância e no vazio.
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