LUCIO PICCOLO (Palermo, 1901 – Capo d'Orlando, 1969), barão de Calanovella, é considerado um dos mais importantes representantes da “lírica pura” do segundo Pós-Guerra, além de ter sido um célebre caso literário em 1954. Foi Eugenio Montale, como se sabe, o primeiro a valorizar a obra desse “barão mágico” siciliano, autor das 9 liriche, correspondente epistular de William Butler Yeats e primo do autor de «Il Gattopardo», Giuseppe Tomasi di Lampedusa. Será ainda Montale a prefaciar a primeira edição dos Canti barocchi e altre liriche, em 1956, definindo Piccolo como «um grande senhor cosmopolita e campesino e sedentário cantor». Se bem que rica em sugestões da terra siciliana, a poesia de Lucio Piccolo surge mais como grande evocação do mito cultural da Sicília do que como uma representação física e histórica. Poesia, de facto, simbolista e visionária, repleta de facetas “cosmopolitas” e ao mesmo tempo estritamente ligada à tradição lírica italiana, de Petrarca até ao próprio Montale. Em 1954, Lucio Piccolo publica os 60 exemplares da plaquette 9 liriche, seguida por Canti barocchi e altre liriche (1956), Gioco a nascondere (1960) e Plumelia (1967). São póstumos os conjuntos La seta (1984) e Il raggio verde (1993).
Em mais um extraordinário post de Andrea Ragusa (nota introdutória e traduções), eis 5 poemas de Lucio Piccolo.
MÓVEL UNIVERSO DE RAJADAS
Móvel universo de rajadas
de raios, de horas sem cor, de perenes
trânsitos, de fasto
de nuvens: é só um instante e já mudadas
resplandecem as formas, milénios balançando.
E o arco da porta baixa e o degrau puído
por demasiados invernos, são fábula no repentino
raiar do sol de Março.
(de Canti Barocchi e altre liriche, 1956)
§
XAROCO
E pelos montes, longe nos horizontes
é longa a risca da cor do açafrão:
irrompe a tropa mourisca dos ventos,
de assalto toma as portas grandes
os observatórios nos telhados d'esmalte,
dá nas fachadas de meio-dia,
agita cortinas escarlates, pendões sanguíneos, papagaios de papel,
abertas azuis descerra, cúpulas, formas sonhadas,
os parreirais sacode, as telhas vivas
aonde água de nascente pousa em potes iriados,
rebentos queima, vergônteas torna em galhos,
para tromba muda os vestíbulos,
precipita-se sobre os gomos incertos
dos jardins, pega nas folhas desertas
e nos jasmins pueris – depois torna-se mais suave
rufa tambores; tiras, fitas...
Mas quando a Ocidente fecha as asas
d'incêndio o selvagem pontifical
e o último charco cliva
por todo lado sobe a noite quente já à espreita.
(de Canti Barocchi e altre liriche, 1956)
§
RONDA
Nas horas de cabeça inclinada, nas horas
perdidas, por vezes em redor
surge zumbindo, roçando-nos
a ronda de sílabas mudas,
os escarabeus da fábula! Indícios
de labiais, de sibilantes sem
vogais, impalpáveis marcas
de vozes negadas anelantes
por uma célula vibrante de ar;
mensagens dos vãos érebos
escavados pelo tempo em nós, esmorecidas
crisálidas de esperas
descidas sem regressos
que talvez um vislumbre afaste
d'um labirinto de dias,
suspensos sobre mínimos vórtices
de silêncio, ou balançando num fio
de sentido, têm a medida
do instante de areia descendo...
depois ocultam-se, apanhadas
por outra ronda mais escura.
(de Gioco a nascondere, 1960)
§
ONDE É MAIS BASTO O MIRTO
Onde mais basto o mirto abre as folhas
entre o verde trigueiro das folhas vivendo
d'uma escondida nascente o breve riacho
desce no som da erva que germina.
Conduz os sonhos até ao limiar ignoto
d'um vale encantado onde ao estival
sopro derrete a luz a clara oliveira
e a memória é um canto sem angústia.
Amplo alguidar em pedra o errabundo
humor acolhe – na margem pousa
a ânfora – e espelhos faz de nuvens e ramos.
Quebrando um dia os fracos velames
dos musgos levantar-se-á do mais fundo
o deslizar do serpe ou o palpitar da rosa?
(de La seta, 1984)
§
OS MORTOS
Uma sombra
que se estendeu por cima do louceiro,
ou no quintal debaixo da caldeira
o olho ainda resplandecendo
quando tudo está apagado,
somente isso, mas são
os mortos. Mal não fazem, o que é que pode
um fluxo de memória
sem músculos nem sangue? Pavor
nas assoalhadas ao entardecer, brancas
sombras, movimentos nas esplanadas
esticadas pela lua nos sonhos de infância...
Também são inquietação, nas noites
humildes – paciência, preces.
Estão nas cordilheiras e nos passos
dos montes, também nos dias
em que é calmo o manto estendido
dos domingos bordados de ouro...
(de Plumelia, 1967)
tradução de Andrea Ragusa
Sem comentários:
Enviar um comentário