FREDERICO LOURENÇO
Clara Suspeita de Luz
Alfragide, Caminho, 2011
por JOÃO PAULO SOUSA
Esta é uma poesia que assume a sua dimensão estética como uma possibilidade de redenção da existência. De tom marcadamente maneirista, a que não será alheia a formação do autor (além de responsável pela tradução de vários clássicos, com natural destaque para as suas admiráveis versões da Ilíada e da Odisseia, Frederico Lourenço publicou também ensaios sobre a cultura grega), organiza-se neste volume como uma elegia dividida em quatro partes, consubstanciando uma delicada transição entre as trevas – título da primeira secção do livro – e o regresso da luz. Representa o processo de lenta aprendizagem de um luto amoroso, de uma perda logo anunciada no primeiro poema, cuja dimensão é tão intrínseca ao sujeito de enunciação que o condena a uma metamorfose:
um silêncio de vozes bem nítidas mas mudas,
que entoam de longe o que será e já foi,
prenúncio de que tudo está preste a mudar,
que não mais serei quem fui até hoje (p. 11).
O paradoxo inerente às vozes nítidas e mudas ou aos tempos futuro e passado antecipa a noção de perda como separação de dois seres que eram simétricos um do outro. Não por acaso, o espelho é um objecto nuclear nas referências desta poesia, permitindo apreender em simultâneo as ideias de reflexo e de transformação do real numa imagem. Institui-se aí um jogo de reversibilidade, de contornos barrocos ou maneiristas, prolongado na tensão sintáctica a que os versos são submetidos, que constitui, para o sujeito poético, uma forma de resistência à passagem do tempo. A vida prolonga a morte na representação, na ilusão da sua presença:
Mas assegurarei existindo que de todo não morras,
mesmo que a morte te venha hoje buscar.
No teatro vazio em cujo palco me representava
para ti que eras o meu único espectador –
para a plateia deserta continuarei a representar-me,
agora sob a capa da tua identidade.
Serei duplamente o par que fazíamos:
representar-me doravante é representar-te a ti. (p. 12)
É através de um complexo e permanente jogo de desdobramentos, realizado em simultâneo aos níveis conceptual e estrutural, que o sujeito poético vai desenhando o que poderíamos classificar como um percurso de aprendizagem provisória do desencontro. Se é certo que a perda desencadeia esse trajecto, não o é menos que a sua efectivação parece carecer da literatura para ser levada a bom termo. De certo modo, não estamos longe das conclusões finais do narrador de Proust, que, no último volume de À la Recherche du Temps Perdu, compreende que reside na arte a única possibilidade de resgatar a existência passada. A crença no poder redentor da estética sustenta esta obra de Frederico Lourenço em que a reversibilidade do sujeito e do «outro» se assume como uma ficção poética, porventura a mais capaz de incitar a caminhada existencial a não cessar o seu impulso cego:
Viver a tua ausência é o que me resta agora.
Viverei cada segundo em que não estás na minha vida,
em tua honra cada segundo será vivido por mim.
Porque afinal a tua partida não me privou de ti,
se reencontro a cada momento o teu ser em mim,
se ao ver-me no espelho eu vejo o teu reflexo:
o homem que desde o início claramente tu não eras,
esse «ele» que não foste e que passou a ser «eu». (p. 28)
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