ANA LUÍSA AMARAL
Vozes
Lisboa, Dom Quixote, 2011
Vozes
Lisboa, Dom Quixote, 2011
por JOÃO PAULO SOUSA
A poesia de Ana Luísa Amaral entretece uma relação hábil com os seus predecessores – ou, para ser mais exacto, com os textos a que a autora atribui essa dignidade –, por vezes mais dissimulada, outras vezes mais explícita. Não surpreenderá, assim, que o seu último volume de poemas até à data se intitule Vozes, pois esse é um título que bem poderia aplicar-se a um vasto corpus do seu labor lírico. Estas vozes são variações ou distorções, novos cantos que glosam ou ecoam velhos tópicos, exibindo com determinação a certeza de que a criação não se faz sobre o vazio. Apresentam-se sob a forma de versos alheios, de nomes ou de imagens que a autora mostra ostensivamente ou dilui com subtileza. O leitor pode, então, ser confrontado com um poema intitulado «Inês e Pedro: quarenta anos depois», que serve à autora para uma desconstrução irónica da lenda, ou uma sequência de trovas em que a fala de um cavaleiro alterna com a de uma dama, sendo ambas personagens que assumem – e, ao mesmo tempo, questionam – a sua dimensão de figuras de papel.
É a abrir esta sequência, aliás, que encontramos uma verdadeira arte poética, significativamente intitulada «Palimpsesto», cuja primeira estrofe, no prolongamento do meu raciocínio inicial, vale a pena transcrever:
Limpa o cesto bem limpo,
mas deixa lá ficar sombra ligeira:
essa primeira sílaba.
Sobre ela
podes encher o cesto com mais sílabas,
e até outras palavras.
Em consequência de um rigoroso corte dos versos, sugerindo uma estratégica delimitação de sentidos, esta estrofe apresenta as diversas etapas da construção (apetecia-me dizer tacteada) do poema; os três últimos versos, em particular, compõem quase uma narrativa (falsa, na medida em que todas as narrativas, impondo uma ordem que é sobretudo reconstrutiva, inventam uma realidade) do labor lírico. Poder-se-á acrescentar então, para prolongar ou completar esta ideia, que é sobretudo na capacidade de gerir a dosagem do que fica no fundo do cesto com o que lá se põe de novo – e também, como talvez seja óbvio, na subtileza com que se misturam esses materiais – que reside o que habitualmente se designa como o talento poético.
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