GASTÃO CRUZ
Observação do Verão
Observação do Verão
Lisboa, Assírio & Alvim, 2011
por JOÃO PAULO SOUSA
Talvez não seja desajustado apresentar a arte da variação, no sentido musical, como uma das características distintivas da poesia de Gastão Cruz. A introdução de pequenas diferenças numa melodia serve para a distender no tempo, para a projectar até um período indeterminado, assim lhe incutindo uma vida própria, que não é meramente a da repetição, antes a da multiplicação ou do desdobramento. De certo modo, a variação é uma tentativa de atenuar ou contrariar a evidência da passagem do tempo, é uma resposta à angústia do vazio ou à consciência da morte, mas edificada sem uma intensidade emocional muito visível. É isso o que manifestamente está patente logo no poema de abertura de Observação do Verão, intitulado «Visão do mundo», que termina com uma referência à
duração dos
troncos e dos ramos, vida
contemporânea
das que passaram (p. 11).
Se é certo que os troncos e a folhagem das árvores servem ao poeta para nos aproximar do princípio de um determinado Verão, não o é menos que esses elementos são também utilizados para lembrar a efemeridade da vida humana e a resistência da natureza. Assim, é com uma delicadeza feita de um trabalho rigoroso da língua que Gastão Cruz consegue criar quadros ou imagens capazes de conter uma verdade artística – à maneira da pessoana teoria do fingimento poético, entenda-se – que responda à melancolia. O Verão do poema é uma imagem, mas a sua realidade poética é inquestionável, como se afirma em «Representação»:
Porque tu és imagem
falo de ti verão como se fosses
uma fotografia ou o seu real (p. 20).
Não se pode dizer que Gastão Cruz apresente, neste volume, novidades relevantes em relação à sua produção poética anterior, mas isso também não seria de esperar numa obra que, como já referi, se distingue precisamente pelo uso da variação. Um poema como «Aniversário», que já poderia ser visto como uma resposta ao célebre texto homónimo de Álvaro de Campos, parte da mesma data – 15 de Agosto – que «Esse antigo futuro», incluído no livro Escarpas (Assírio & Alvim, 2010), de início – este sim – acentuadamente pessoano: «O tempo em que festejávamos o dia dos teus anos» (p. 49).
A variação em Gastão Cruz tem como ponto de partida a poesia – a sua ou a alheia, a de língua portuguesa ou a que ele escolheu traduzir – e representa uma afirmação de vitalidade como só a pode ter quem, paradoxalmente, conhece a fundo a angústia existencial e o confronto com a morte. É em Observação do Verão que encontramos, a terminar a primeira secção, homónima do livro, um belíssimo poema que mostra como esse combate se processa, nesta obra, quase com apaziguamento; intitula-se «Vivos no sonho»:
O sonho desconhece a
morte: nele
movem-se vivos os que outrora viram
a metade existente da metáfora
mas apenas
o lado que é imagem
sem matéria
deixam ver hoje no enigma inteligível
desse tempo que não se reconhece
a si mesmo na luz de agora viva (p. 22).
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