sexta-feira, outubro 19, 2012

MANUEL ANTÓNIO PINA (5)

(actualizado)


MANUEL ANTÓNIO PINA
18.11.1943 - 19.10.2012


O PINA


São várias as tribos que habitam a cidade. Entre elas há uma, talvez a mais insignificante de todas, constituída por poetas para quem poesia e salvação do mundo são uma e a mesma coisa.

Com a morte do Eugénio de Andrade, e sem se dar conta, o Pina passou a liderar essa tribo. Ele é em muitos aspectos a antítese do Eugénio: não estou a ver nenhum jovem poeta cheio de borbulhas a tocar à campainha do n.º 119 da Rua de S. João Bosco. O Pina é um judeu zen, de uma docilidade extrema. Um sportinguista apaixonado pela teoria das cordas.

Foi a experiência da poesia que nos aproximou. Passaram muitos anos, desde que nos conhecemos a uma mesa do Piolho: encontros em outros cafés, em casa, telefonemas quilométricos depois do jantar. A poesia continuou sempre presente: às vezes apenas num verso e ultimamente cada vez mais no silêncio.


Jorge Sousa Braga

(texto publicado no Jornal de Letras, num número de homenagem a Manuel António Pina)



§



O MELHOR DE TODOS NÓS


Manuel António Pina era o melhor de todos nós. O que mais impressionava nele, quando nos dava a honra da sua companhia, era a sapiência, o conhecimento, a ciência com que discorria sobre inúmeros assuntos com uma simplicidade e um despretensiosismo desarmantes. Do seu aspecto físico – afectuosamente característico, a tez calva, os óculos redondos – emanava um espírito judeu no que esta palavra tem de bondade, naquilo que caracteristicamente remonta à mundividência, à cultura, à partilha.

Duas vezes tive a honra de apresentar livros seus mas sempre recebeu a minha profunda admiração pela sua obra com uma humildade e um pudor que lhe eram característicos. Não que não tivesse consciência da complexidade e profundidade da mesma – ele era meticuloso na escolha das palavras e revia bastante os seus poemas, – mas uma vez publicados, preferia louvar a obra de outros. E ele sabia ser generoso quanto adjectivava. A sua obra poética recupera questões de identidade e alteridade muito ao gosto de PessoaPina era hábil no manejo da dúvida metódica, como Szymborska, ao não deixar que se estabelecesse certeza alguma sobre as coisas, as pessoas e o mundo.

A dúvida era o seu caminho. Mas interessava-se por muitos outros assuntos para lá dos da sua formação – tinha por exemplo uma verdadeira paixão pela física. De forma que tomar café com ele consistia em subir a um carrossel onde se podia ouvi-lo falar desde física quântica ao amor que tinha pela sogra, de Jorge Luís Borges à diálise peritonial, da falta de ética dos políticos aos inevitáveis felinos. Manuel António Pina era um homem bom e foi um lutador – guerreiro medalhado por cicatrizes várias –, porque resistiu a doenças, algumas das quais bastante graves, integrando-as porém na sua vida com a naturalidade com que ia comprar pão ao supermercado de bairro, ou comida chinesa ao restaurante do fim da rua.

Era por aí que muitas vezes era avistado, pelas ruas da cidade, mas nunca foi somente aí que eu o guardei: para mim – dentro do meu (como dizer?) coração –, Pina sempre foi o meu Nobel, o meu Brodsky de estimação, apesar de ele recusar sistematicamente esse endeusamento. Manuel António Pina era um sábio, um desses génios literários a quem, se não lhe tivesse sido atribuído o Prémio Camões, teria sido cometida uma enorme injustiça. Vou sentir muito a falta dele, um gigantesco vazio, como uma chávena de café escoada, um prato de migalhas vazio.


João Luís Barreto Guimarães

(depoimento publicado no jornal i)

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