sábado, outubro 06, 2012

NOTAS SOBRE LIVROS (2)

RUI LAGE
UM ARRAIAL PORTUGUÊS
Lisboa, Ulisseia, 2011



por JOÃO PAULO SOUSA



Os versos que abrem e os que fecham Um Arraial Português servem como amostra da capacidade demonstrada por Rui Lage de misturar habilmente erudição com o que alguns chamam cultura popular. O título, discreta evocação de Alexandre O'Neill – como se o arraial representasse um contraponto ao que outrora fora um adeus –, já sugeria uma incursão nessa matéria que muitos poetas considerariam (ou consideram) atrozmente vulgar e da qual só querem guardar distância, pensando talvez que a arte não se faz de tudo o que é humano: falo, como é evidente, do universo de festas e romarias tão típico do Verão e que, neste livro, é perspectivado de um modo intrinsecamente lusitano. Convém lembrar que os versos de abertura são atribuídos a um cantor pimba e os de fecho têm a assinatura de um trovador medieval, sendo esta uma estratégia que, além de aproximar, sem cinismo, as duas épocas, serve também para nos recordar como a cantiga de romaria está inscrita nos primórdios da literatura portuguesa. Rui Lage sabe citar ou invocar versos alheios com subtileza, demonstrando uma notória consciência das possibilidades de aproveitamento dessa matéria verbal. Este aproveitamento é da ordem da ironia e não do cinismo, como já referi, porque o sujeito poético não se coloca no exterior do que nos apresenta, ou, para usar os termos de Peter Sloterdijk na sua Crítica da Razão Cínica, não se posiciona do lado do poder, mesmo que este se manifeste apenas no domínio ideológico. Atente-se, por exemplo, no poema de abertura, «Ultimato», cuja primeira estrofe desenvolve hábeis oscilações de sentido a partir de um convite para dançar e da substituição do previsível vocábulo menina por país:


O país dança?, disse-lhe,
tropeçando na sombra
que o seu vestido carimbava
no largo da Matriz.
Mas o país alegou cansaço,
pé de chumbo, futuro
comprometido.


O isolamento da última palavra no último verso da estrofe, criando, pela sua presença, uma intensificação do sentido, é um processo representativo das oscilações semânticas que esta poesia se compraz em edificar. Leia-se a estrofe sem tal palavra para se compreender como a força da linguagem poética pode residir na escolha de apenas um vocábulo, embora, como é óbvio, não se possa escamotear a importância das relações que ele estabelece com os outros para se perceber com exactidão todo o seu valor. Esta questão é ainda mais pertinente quando canções ditas populares são um ponto de partida (assumido com tal desenvoltura que, na página 61, se elucida o leitor acerca das «canções da música ligeira portuguesa» que estão na origem dos títulos dos poemas) e o ponto de chegada é um discurso lírico que transforma em metal precioso a rude matéria-prima de um quotidiano estival. Não espanta, por isso, que poema e vida pareçam aqui estar tão ligados, não porque o primeiro, cheio de ingenuidade, pense sequer em copiar a segunda, mas antes porque esta nunca está ausente daquele, o que é exemplarmente dito na última estrofe de «Quando à noitinha nada apareceu»:


(como ir embora deste poema
sem me pôr fora da vida
a que o poema
se agarra?)
(p. 48)

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