«VOZES» DA POESIA ITALIANA (3)
por Andrea Ragusa
Apresentamos, no âmbito do percurso «Vozes da poesia italiana», alguns poemas de Giorgio Caproni: «Amanhecer», incluído na colectânea «Il passaggio d’Enea» (1956), «Prece», que pertence ao conjunto «Il seme del piangere» (1959) e «Também eu» (de «Il muro della terra»), por nós traduzidos. Publicamos, de seguida, mais cinco breves apontamentos de Caproni na versão em português da autoria de David Mourão-Ferreira: «Pedradas», «Condição», «Experiência», «Regresso», «Deus absconditus», que também fazem parte do livro «Il muro della terra», de 1975.
GIORGIO CAPRONI (Livorno, 1912 - Roma, 1990), é um dos escritores que mais contribuiram para construir um mapa da Itália dilacerada do segundo Pós-Guerra. A espontaneidade, o abandono à palavra, a «leveza» da sua linguagem, põem-no muito longe de qualquer intelectualismo e, ao mesmo tempo, fazem dele um dos que melhor souberam juntar a erudição com a vida do dia-a-dia. Neste sentido (e se excluirmos o livro «Cronistoria» de 1943, onde estão presentes experimentações «herméticas»), Giorgio Caproni, tal como Penna, está muito mais perto de Saba do que do chamado «hermetismo» do seu tempo. Nasceu em Livorno e morreu em Roma, mas ficou sempre estritamente ligado à cidade de Génova, onde morou durante alguns anos: é esta a sua principal cidade-cenário – com seus cafés, seus eléctricos, suas subidas e descidas, suas bicicletas e seus comboios – a que mais está presente na sua obra, como se pode observar em «Stanze della funicolare», de 1952, e em vários componimentos de «Il passaggio d’Enea» (1956). Aliás, Livorno, cidade-berço, voltará a ter o seu lugar proeminente nos «Versi livornesi», incluídos na colectânea «Il seme del piangere» de 1959. A melancolia manifestada em obras como «Finzioni», ou os citados «Cronistoria» e «Stanze della funicolare» (todos reunidos depois em «Il passaggio d’Enea»), reaparece em «Il seme del piangere» – que é uma ode à juventude, à infância em Livorno, a um passado distante onde parte à procura da mãe, Anna Picchi: solidão e melancolia, enfim, correm paralelos ao silêncio do céu ‘governado’ por um «Deus absconditus», nos versos de «Il muro della terra», publicado em 1975. O muro da terra, expressão que o cristão Dante utilizava, no décimo primeiro canto do «Inferno», para descrever a cidade de Dite, torna-se, na poesia de Caproni, em alegoria do limite da condição humana, a qual não se pode lacerar, nem sequer depois de uma «guerra de unhas», mesmo porque «Deus não está oculto / Mas suicidado».
AMANHECER
Meu amor, nos vapores dum café
ao amanhecer, meu amor que inverno
longo e que calafrio estar à tua espera! Cá
aonde o mármore do sangue é gelo, e sabe
a frescura até o olho, agora no ermo
ruído além da geada eu que elétrico
ouço, abrindo e fechando eternamente
as portas desertas?... Amor, está parado
o meu pulso: e se o copo no fragor
subtil tem um tremor nos dentes, talvez
seja o eco dessas rodas. Mas tu, amor,
não me digas que agora em vez de ti está o sol
brotando, não me digas que daquelas portas,
eu cá, com teus passos, já estou a aguardar pela morte.
(de «Il passaggio d’Enea», 1956)
§
PRECE
Minha alma leve,
peço-te que vás a Livorno.
E com tua candeia
tímida, à noitinha,
dá uma volta; e, se tiveres tempo,
explora e perscruta, e escreve
se por acaso Anna Picchi
ainda estiver viva entre os vivos.
Ainda hoje retorno,
desiludido, de Livorno.
Mas tu, bem mais nítida
do que eu, a camisola
lembrarás, e o rubi
de sangue, na gargantilha
de ouro que ela tinha
no peito, embaciado.
Minh’alma, sê boa
e vai à procura dela.
Tu sabes o que eu daria
para encontrá-la na rua.
(de «Il seme del piangere», 1959)
§
TAMBÉM EU
Também eu tentei.
Foi tudo uma guerra
de unhas. Mas agora eu sei. Ninguém
poderá jamais perfurar
o muro da terra.
(de «Il muro della terra», 1975)
traduções de Andrea Ragusa
§
PEDRADAS
Também eu tentei falar.
Sem talvez saber a língua.
Todas as frases erradas.
Em resposta: só pedradas.
§
CONDIÇÃO
Um homem só,
fechado no seu quarto.
Com todas as suas razões.
Com todos seus erros.
Só, nesse quarto vazio,
e falando. Aos mortos.
§
EXPERIÊNCIA
Todos os lugares que vi,
que visitei,
agora sei – estou certo:
nunca lá me encontrei.
§
EXPERIÊNCIA
Voltei a esse lugar
onde nunca tinha estado.
Do que não foi, nada mudado.
Sobre a mesa (de oleado
aos quadrados) meio vazio
encontrei o mesmo copo
nunca cheio. Tudo
permanece tal e qual
eu o não tinha deixado.
§
DEUS ABSCONDITUS
Este simples dado:
Deus não está oculto.
Mas suicidado.
(de «Il muro della terra», 1975)
traduções de David Mourão-Ferreira
3 comentários:
passando os olhos com brevidade, gostei bastante da curadoria de vocês - inclusive, pude ler um poema de wisława szymborska inédito para mim ("a miúda que puxa a toalha").
hoje tive acesso a mais três poemas dela, publicados há alguns dias no suplemento literário dominical do jornal folha de são paulo. ei-los: http://sergyovitro.blogspot.com/2012/02/o-primeiro-amor-wisawa-szymborska.html
moro no rio de janeiro e também escrevo poemas. gostaria de convidá-los a acessar minha página: http://umpoematoscopordia.blogspot.com/
um abraço do brasil,
guilherme
É um autor caracterizado pela objectividade de discursos e sentimentos, algo invulgar na generalidade dos poetas. Gostei.
Se puder, passe também pelo meu blog:
http://palavreado-inutil.blogspot.com/
Um abraço.
Estou sempre aqui. Local de ótima poesia.
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