GABRIEL DEL SARTO nasceu em Ronchi (Massa Carrara, Toscânia) em 1972 e estreou-se como poeta em 1998 nas páginas da colectânea Sesto quaderno italiano di Poesia contemporanea (Edições Marcos y Marcos). Depois de ter publicado parte da sua obra poética em antologias – entre as quais L’opera comune (Atelier, 1999), Poeti di Vent’anni (La Stampa, 2000) e Nuovissima poesia italiana (Mondadori, 2004) – saiu em 2003 o conjunto I viali (Edições Atelier) e, em 2008, a plaquette Meridiano Ovest, publicado pela Transeuropa. Del Sarto é igualmente autor de ensaios sobre a utilização da narração nas áreas da consultadoria e formação, entre os quais se destacam: Raccontare storie (Carocci, 2007), o manual de escrita criativa Narrazione e invenzione (Erickson, 2007), Raccontare le competenze (Transeuropa, 2008) e I sommersi e i sopravvissuti (Transeuropa, 2008). A sua página pode ser visitada em http://www.gabrieldelsarto.com/. O Poesia Ilimitada acolhe uma vez mais a colaboração de Andrea Ragusa, tradutor e correspondente de poesia italiana deste blogue, responsável pela selecção e tradução dos poemas de Gabriel del Sarto que se seguem, traduzidos de «I viali» (2003).
A visão
Esplêndida lua de Dezembro ela
a poucos dias do fim
branca altalucente como nunca, e perdidos
ramos, filigranas, e sedosas crinas
estelares, poeira dourada.
...
A idade avança, também nós ausentes
dos nossos anos anteriores, hóspedes
do crescimento cruel.
À luz – fogo ou lua? – os rostos
esboçados, vizinhos, os gestos
descompostos
de quem conhecemos, de quem
fomos
- mas é pouco: no encontro desta noite,
com fácil cuidado, os mecanismos humanos
doces se desabituam.
§
Vidas Vividas
a Bartímeo, cego
Perceber pode não servir, neste excessivo azul-luz,
no sol que continua a esburacar Fevereiro (olhos
sem olhar postos em negras andorinhas de Maio), coisas
por dizer que são caladas: um exausto meio-dia
num cenário de carnaval incerteza (está cheio
de beleza o vazio que no fundo da nossa procura
reaparece sempre) inundado pelo sol de uma graça
animal e mulher. Fico é aqui com os meus bibelôs.
As preces esperaram pelas palavras. A camisola
de lã suada, arrepios de febre, colada às costas.
E edificámos contentamentos por instinto
de conservação, o gesto e o saber viver. Morrer.
Depois reencontrarmo-nos por cima das coisas
perdidas quando os ventos não cessam, motes e esperas, no coração
da noite, um só é o vento quando nos pomos à escuta...
as cãibras, as insónias com geometrias de sombras
e luzes, mas também isto, acreditar por instinto de conservação,
também isto é
sublime e quotidiano.
§
Microclima
Um domingo de manhã com sol, tão fácil
apaixonar-se, acordar mais tarde,
talvez em Abril
ou nas súbitas variações primaveris
do final de Fevereiro,
é fácil apaixonar-se
– apaixonei-me por ti muitas vezes no cais –
do azul, das conversas
dos amigos, sorrisos.
São estes céus insuperáveis, sempre demasiado breves
as horas para as pupilas,
a condicionar as nossas mentes,
as psicologias,
e já não sei viver
na esterilidade sem sentido de culpa.
O que poderia ser – as folhas
nesta avenida comprida, os papéis
nos grandes contentores da freguesia, de madeira – entre nós.
As dissonâncias.
A nossa fronteira são os Alpes
quase azuis, a neve de ontem à noite
faz-nos falar, sentia-se que estava para cair.
Se caísse sobre a cidade sobre a praia
como em oitenta e cinco, as escolas
fechadas, a irrealidade de tudo – outros desesperos.
Os chuviscos tardios nas avenidas que se alagam
facilmente nos lados
e à noite muitas vezes se encontra uma névoa amanteigada
como se estivéssemos no parmigiano. Seguem-se
mal-estares, olheiras, por factos
tão repentinos
e depois as danosas marulhadas, mas também estas
com a sua misteriosa violência, também estas
são qualquer coisa que deve existir.
§
As dependências
Chegou a Primavera com algumas novidades, chegou
Abril.
Ronchi tem a sua calma consistente, invejável,
em Abril,
Abril aqui é lento, estar sentado
nos bancos dos jardins como reformados em Setembro, ou de
mãos dadas pela beira-mar, e construir
as pequenas felicidades
manter uma bondade. Solar
a Primavera chegou – a tua incontornável dignidade de parturiente.
Iniciada por entre as curvas do estio, há meses, um sol excedente
como agora, e as dependências. Silenciosas são estas coisas
que fazem a vida, que alisam
superfícies, amores difusos.
O vento levanta-se entre as palmeiras
e há algo de majestoso, esplendoroso
na sua ligeira descomposição
em luz, talvez o tronco, algo alto
como de uma eleição, e seria preciso acariciar os pinheiros
selvagens, antigos habitadores. Entre os azuis
desta terra
que amplamente se doa existe uma piedade, existem passos
desconhecidos sobre o Inverno, o inferno...
Sim, em certas horas
não sei...
Abril aqui é lento e queria ficar – a tua garganta
tensa, muscular, os teus gritos
animais, fizeste de mim... – as últimas forças bem empregues, assim
ensanguentado
dom do Senhor veio à
luz.
§
Ida e Volta
Quando tiveste um gesto,
assim te lembro,
perfumavas os lugares. Para os céus nocturnos
me levavas, e o mar,
e era sempre Setembro, ou podia
sê-lo. Assim vai para além do limiar
o sentido da terra
toca os filhos, as casas baixas, sempre estivais,
simples sonhos. As vivas
épocas dos amores, nas planícies
que comovem. Assim ainda sofro
os mecanismos, as hordas em cima dos fios
cortados, que te não conhecem.
...
Se visses
os pinheiros da mata no final de Maio,
é suave, e as outras
figuras da vida que esmorecem
em cadência, ida e volta.
E como noutros raios oblíquos
e sombras e ventos
és transparência mais próxima, luz
rasante sobre os campos.
§
Os parques dos mortais
Tenho muitos parques dentro de mim
e delitos
- nas alamedas como
comunicam os bancos,
de madeira mais quentes,
sustentam no longo calor
e se sobrepõem aos dias
dos meus aniversários
amáveis como parecem agora
rostos suados no jardim de casa,
amigos, entre figos e ameixas perfeitas.
Deitado em cima da cama só vejo o céu
e oiço, não abafado pela música
do rádio, o corta-relvas do vizinho,
o alívio da estação, como
um véu estendido, com o cheiro acre
da erva cortada. Eros e sol, assim.
- Como Colin,
embora durante poucos dias,
fora do jardim secreto.
Mas será da morte para a vida,
também para mim? Virá
a hora e no sono imóvel
de doente sou percorrido
pelas voltas ferozes dos meus filhos,
rápidos, nos parques dos mortais.
§
Se revejo, na luz pálida...
Se revejo, na luz pálida
do compartimento, o caminho
da memória, e procuro o fio
que o liga a mim, hoje; se aparece
com normal dor o filho que eu era
o afastamento e os nascimentos
e outros sinais
não apanho mais que as coisas
feitas, ou alguns nomes,
e a eles me reporto.
É no momento da recordação
que a vida se complica.
§
Sábado
Amigo do nazareno, mais aceitável é o dia da pena
pela dor sua companheira, dor que não se deve perder,
que não se deve esquecer
sendo que nunca se esquece
a Primavera durante o Inverno. Uma aproximação
constante a algo mais amado, talvez
uma loucura apenas, ou uma pobreza maior.
Mas agora mesmo agora no meio desta roupa
para estender, perceber um gelo preguiçoso que já não espera pela
ressurreição, único possível resgate das angústias
nossas... Pescador, do mar vem tudo, do mal
vem cada mal e cada coisa, tu satanás e pedra,
calosa verdade humana,
ó pescador...
que, se à noite, penso em ti,
no que ficou da tua história
da tua prece...
Amigo do nazareno, o vento que agora sopra é quente como
é quente o sangue que nos une, e nos torna iguais na vida
expostos à sua prova.
Além da fronteira fica apenas uma canção de uma coragem
superior –
no coração beleza não acumulável.
§
O amor
Suaves refracções – estas leves
dores. Tempos e linhas rectas e vozes
parciais vindas dos bosques e do mar, e as avenidas.
Sobre a poeira sobre a palmeira de casa
ouve-se um vento novo, claro,
e por vezes as lunações, os regressos. A parte
de nós a nós incessantemente
ignota. Essas noites ainda por trás
das colinas contigo, luminosas, a escuridão
lá fora, caminhando pelos caminhos terrestres
gordurosos de matéria, com alegria e astros. Ver-te
assim, à minha procura. Lembras-me a palmeira que não se quebra
e que luta contra o clima e com os dias. Ó anjos atordoados
pelo verde cheiro a morte da erva, e o renascer,
- e os anjos são a mais algébrica e exacta
fórmula do nosso medo – e a lua
as marés nocturnas dos bosques, sou
frágil, e a galáxia sobre o relvado
da Argegna , o respirar
escuro e espantoso da Natureza.
E gostaria ainda, tal como antes, e tu também,
flor vermelha, mas depois os silêncios, lenta
respiração do amor e não sei nós os dois o nosso
lentíssimo morrer das fibras,
dos filhos.
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