domingo, março 27, 2011

GABRIEL DEL SARTO (2)

GABRIEL DEL SARTO nasceu em Ronchi (Massa Carrara, Toscânia) em 1972 e estreou-se como poeta em 1998 nas páginas da colectânea Sesto quaderno italiano di Poesia contemporanea (Edições Marcos y Marcos). Depois de ter publicado parte da sua obra poética em antologias – entre as quais L’opera comune (Atelier, 1999), Poeti di Vent’anni (La Stampa, 2000) e Nuovissima poesia italiana (Mondadori, 2004) – saiu em 2003 o conjunto I viali (Edições Atelier) e, em 2008, a plaquette Meridiano Ovest, publicado pela Transeuropa. Del Sarto é igualmente autor de ensaios sobre a utilização da narração nas áreas da consultadoria e formação, entre os quais se destacam: Raccontare storie (Carocci, 2007), o manual de escrita criativa Narrazione e invenzione (Erickson, 2007), Raccontare le competenze (Transeuropa, 2008) e I sommersi e i sopravvissuti (Transeuropa, 2008). A sua página pode ser visitada em http://www.gabrieldelsarto.com/. O Poesia Ilimitada acolhe uma vez mais a colaboração de Andrea Ragusa, tradutor e correspondente de poesia italiana deste blogue, responsável pela selecção e tradução dos poemas de Gabriel del Sarto que se seguem, traduzidos de «I viali» (2003).




A visão


Esplêndida lua de Dezembro ela

a poucos dias do fim

branca altalucente como nunca, e perdidos

ramos, filigranas, e sedosas crinas

estelares, poeira dourada.


...


A idade avança, também nós ausentes

dos nossos anos anteriores, hóspedes

do crescimento cruel.

À luz – fogo ou lua? – os rostos

esboçados, vizinhos, os gestos

descompostos

de quem conhecemos, de quem

fomos

- mas é pouco: no encontro desta noite,

com fácil cuidado, os mecanismos humanos

doces se desabituam.



§



Vidas Vividas


a Bartímeo, cego


Perceber pode não servir, neste excessivo azul-luz,

no sol que continua a esburacar Fevereiro (olhos

sem olhar postos em negras andorinhas de Maio), coisas

por dizer que são caladas: um exausto meio-dia

num cenário de carnaval incerteza (está cheio

de beleza o vazio que no fundo da nossa procura

reaparece sempre) inundado pelo sol de uma graça

animal e mulher. Fico é aqui com os meus bibelôs.


As preces esperaram pelas palavras. A camisola

de lã suada, arrepios de febre, colada às costas.

E edificámos contentamentos por instinto

de conservação, o gesto e o saber viver. Morrer.

Depois reencontrarmo-nos por cima das coisas

perdidas quando os ventos não cessam, motes e esperas, no coração

da noite, um só é o vento quando nos pomos à escuta...

as cãibras, as insónias com geometrias de sombras

e luzes, mas também isto, acreditar por instinto de conservação,

também isto é

sublime e quotidiano.



§



Microclima


Um domingo de manhã com sol, tão fácil

apaixonar-se, acordar mais tarde,

talvez em Abril

ou nas súbitas variações primaveris

do final de Fevereiro,

é fácil apaixonar-se

– apaixonei-me por ti muitas vezes no cais –

do azul, das conversas

dos amigos, sorrisos.

São estes céus insuperáveis, sempre demasiado breves

as horas para as pupilas,

a condicionar as nossas mentes,

as psicologias,

e já não sei viver

na esterilidade sem sentido de culpa.

O que poderia ser – as folhas

nesta avenida comprida, os papéis

nos grandes contentores da freguesia, de madeira – entre nós.


As dissonâncias.

A nossa fronteira são os Alpes

quase azuis, a neve de ontem à noite

faz-nos falar, sentia-se que estava para cair.

Se caísse sobre a cidade sobre a praia

como em oitenta e cinco, as escolas

fechadas, a irrealidade de tudo – outros desesperos.

Os chuviscos tardios nas avenidas que se alagam

facilmente nos lados

e à noite muitas vezes se encontra uma névoa amanteigada

como se estivéssemos no parmigiano. Seguem-se

mal-estares, olheiras, por factos

tão repentinos

e depois as danosas marulhadas, mas também estas

com a sua misteriosa violência, também estas

são qualquer coisa que deve existir.



§



As dependências


Chegou a Primavera com algumas novidades, chegou

Abril.

Ronchi tem a sua calma consistente, invejável,

em Abril,

Abril aqui é lento, estar sentado

nos bancos dos jardins como reformados em Setembro, ou de

mãos dadas pela beira-mar, e construir

as pequenas felicidades

manter uma bondade. Solar

a Primavera chegou – a tua incontornável dignidade de parturiente.

Iniciada por entre as curvas do estio, há meses, um sol excedente

como agora, e as dependências. Silenciosas são estas coisas

que fazem a vida, que alisam

superfícies, amores difusos.

O vento levanta-se entre as palmeiras

e há algo de majestoso, esplendoroso

na sua ligeira descomposição

em luz, talvez o tronco, algo alto

como de uma eleição, e seria preciso acariciar os pinheiros

selvagens, antigos habitadores. Entre os azuis

desta terra

que amplamente se doa existe uma piedade, existem passos

desconhecidos sobre o Inverno, o inferno...

Sim, em certas horas

não sei...

Abril aqui é lento e queria ficar – a tua garganta

tensa, muscular, os teus gritos

animais, fizeste de mim... – as últimas forças bem empregues, assim

ensanguentado

dom do Senhor veio à

luz.



§



Ida e Volta


Quando tiveste um gesto,

assim te lembro,

perfumavas os lugares. Para os céus nocturnos

me levavas, e o mar,

e era sempre Setembro, ou podia

sê-lo. Assim vai para além do limiar

o sentido da terra


toca os filhos, as casas baixas, sempre estivais,

simples sonhos. As vivas

épocas dos amores, nas planícies

que comovem. Assim ainda sofro

os mecanismos, as hordas em cima dos fios

cortados, que te não conhecem.


...


Se visses

os pinheiros da mata no final de Maio,

é suave, e as outras

figuras da vida que esmorecem

em cadência, ida e volta.


E como noutros raios oblíquos

e sombras e ventos

és transparência mais próxima, luz

rasante sobre os campos.



§



Os parques dos mortais


Tenho muitos parques dentro de mim

e delitos

- nas alamedas como

comunicam os bancos,

de madeira mais quentes,

sustentam no longo calor

e se sobrepõem aos dias

dos meus aniversários

amáveis como parecem agora

rostos suados no jardim de casa,

amigos, entre figos e ameixas perfeitas.

Deitado em cima da cama só vejo o céu

e oiço, não abafado pela música

do rádio, o corta-relvas do vizinho,

o alívio da estação, como

um véu estendido, com o cheiro acre

da erva cortada. Eros e sol, assim.

- Como Colin,

embora durante poucos dias,

fora do jardim secreto.

Mas será da morte para a vida,

também para mim? Virá

a hora e no sono imóvel

de doente sou percorrido

pelas voltas ferozes dos meus filhos,

rápidos, nos parques dos mortais.



§



Se revejo, na luz pálida...


Se revejo, na luz pálida

do compartimento, o caminho

da memória, e procuro o fio

que o liga a mim, hoje; se aparece

com normal dor o filho que eu era

o afastamento e os nascimentos

e outros sinais

não apanho mais que as coisas

feitas, ou alguns nomes,

e a eles me reporto.

É no momento da recordação

que a vida se complica.



§



Sábado


Amigo do nazareno, mais aceitável é o dia da pena

pela dor sua companheira, dor que não se deve perder,

que não se deve esquecer

sendo que nunca se esquece

a Primavera durante o Inverno. Uma aproximação

constante a algo mais amado, talvez

uma loucura apenas, ou uma pobreza maior.

Mas agora mesmo agora no meio desta roupa

para estender, perceber um gelo preguiçoso que já não espera pela

ressurreição, único possível resgate das angústias

nossas... Pescador, do mar vem tudo, do mal

vem cada mal e cada coisa, tu satanás e pedra,

calosa verdade humana,

ó pescador...

que, se à noite, penso em ti,

no que ficou da tua história

da tua prece...

Amigo do nazareno, o vento que agora sopra é quente como

é quente o sangue que nos une, e nos torna iguais na vida

expostos à sua prova.

Além da fronteira fica apenas uma canção de uma coragem

superior –

no coração beleza não acumulável.



§



O amor


Suaves refracções – estas leves

dores. Tempos e linhas rectas e vozes

parciais vindas dos bosques e do mar, e as avenidas.

Sobre a poeira sobre a palmeira de casa

ouve-se um vento novo, claro,

e por vezes as lunações, os regressos. A parte

de nós a nós incessantemente

ignota. Essas noites ainda por trás

das colinas contigo, luminosas, a escuridão

lá fora, caminhando pelos caminhos terrestres

gordurosos de matéria, com alegria e astros. Ver-te

assim, à minha procura. Lembras-me a palmeira que não se quebra

e que luta contra o clima e com os dias. Ó anjos atordoados

pelo verde cheiro a morte da erva, e o renascer,

- e os anjos são a mais algébrica e exacta

fórmula do nosso medo – e a lua

as marés nocturnas dos bosques, sou

frágil, e a galáxia sobre o relvado

da Argegna , o respirar

escuro e espantoso da Natureza.

E gostaria ainda, tal como antes, e tu também,

flor vermelha, mas depois os silêncios, lenta

respiração do amor e não sei nós os dois o nosso

lentíssimo morrer das fibras,

dos filhos.



Sem comentários: