«Escolho um poema de Thomas Hardy publicado em 1917, na colectânea Moments of Vision. Pese embora a qualidade e popularidade de muitos dos seus romances ("Tess of the D' Ubervilles" ou "Jude the Obscure", por exemplo, ambos adaptados ao cinema), entre nós a sua poesia é praticamente desconhecida. Mas Hardy é o grande poeta inglês da transição do período vitoriano para o modernismo. Não cheguei a este poema através de qualquer antologia mas sim através de um CD da colecção belga "Made to Measure". Samy Birnbach (vocalista dos pós-punks israelistas Minimal Compact) e Benjamin Lew (colaborador assíduo de Steven Brown dos Tuxedomoon) musicaram em 1989 uma série de poemas notáveis num disco intitulado "When God was famous: A tribute to poetry": Lowry, Apollinaire, Yeats, Celan, Patchen, entre outros, e este "An Upbraiding". Para exprimir o seu desencanto com uma relação amorosa que decerto já conhecera melhores dias, e "repreender" – daí o "upbraiding" – a amada (a primeira esposa Emma Lavinia Gifford? Who cares!), Hardy escolhe pôr-se a falar depois de morto, recordando, a partir da morte, as canções que o casal, in illo tempore, conhecia, e que a viúva vem agora cantar junto ao seu túmulo mas que, em vida do sujeito, ela se abstinha de cantar. Singular estratagema (pois que se pode retorquir a um morto?) que baralha a nossa percepção da regular sucessão temporal, e do qual resulta um misto de romantismo negro e de cinismo amargo. Sobretudo na última estrofe onde há uma pontinha de ódio a surgir por dentro do amor de um espectro que, não fosse espectro, e pudesse voltar atrás (mas ele pode, e aí é que está) teria feito as coisas doutra maneira… Ora, se este poema, muito breve e muito simples, deve ter impressionado à época da sua publicação, mais impressiona agora, 82 anos após a morte de Hardy. Porque agora ele verdadeiramente fala a partir do túmulo. Duas vezes morto, o poeta não cessa de, alheio ao leitor, repreender a sua amada, a qual não cessa de visitar o seu túmulo (inconsolável quando em vida do defunto lhe serviu frieza). Note-se que ela ainda não está morta: "When you are dead", lê-se. Mas a isto ainda podíamos juntar a circunstância de Hardy ter ditado o seu derradeiro poema à sua segunda esposa Florence Emily Dugdale, no seu leito de moribundo…»
AN UPBRAIDING
Now I am dead you sing to me
The songs we used to know,
But while I lived you had no wish
Or care for doing so.
Now I am dead you come to me
In the moonlight, comfortless;
Ah, what would I have given alive
To win such tenderness!
When you are dead, and stand to me
Not differenced, as now,
But like again, will you be cold
As when we lived, or how?
UMA REPREENSÃO
Morto agora tu cantas-me
Canções que usávamos cantar,
Em vivo não tiveste ensejo
Ou vontade de as entoar.
Morto agora tu vens a mim
À luz do luar, inconsolável;
Ah, o que teria dado em vida
Para ganhar-te assim amável!
Quando morreres, frente a mim
sem diferenças, como agora,
mas como igual, serás tão fria
como em vida, como outrora?
Rui Lage nasceu no Porto em 1975. Autor de poesia ("Antigo e Primeiro", "Berçário", "Revólver" e "Corvo"), ensaio, teatro e literatura para a infância. Traduziu poesia de Paul Auster e Pablo Neruda, e ficção de Samuel Beckett. Co-fundou, em 1998, a revista de literatura, música e artes visuais "aguasfurtadas". Em 2009, juntamente com Jorge Reis-Sá, foi responsável pela organização, selecção, introdução e notas de "Poemas Portugueses: Antologia da Poesia Portuguesa do séc. XIII ao séc. XXI" (Porto Editora). Encontra-se a ultimar a sua tese de doutoramento na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
Leia mais sobre Rui Lage no Poesia Ilimitada, aqui.
Sem comentários:
Enviar um comentário