«Seria talvez muito tentado a escolher um poema de António Cabral. Mas oh a crítica depois não dava com ele e eu teria dificuldade em explicar que publicava pelo menos desde 1951 e ainda me levavam a mal de dizer que a sua escrita no meu fraco entendimento era de primeira água. O António Cabral contava histórias do senhor Smith. O senhor Smith era um menino bonito do Duque de Wellington e por uma bagatela comprou quinta no Alto Douro que visitava de cinco em cinco anos. Um dia mostrou má cara olhando as contas da vindima e ameaçou vender a quinta com o argumento de pois «não dar resultado». E vendeu-a. António Cabral também escrevia quadras populares e falava de raposas e ralos e de zirros e urzes e quem agora lá quer saber disso. E retomava histórias antigas. E ficávamos assim por exemplo mais tarde a saber que afinal umas décadas depois em face da produção de noventa pipas de vinho de primeira se apressou o senhor Smith a comprar de novo a quinta concluindo-se que portanto «tem-te cá um faro!» Ora isto não é poesia moderna e não dará muito para trazer às antologias. Só por isso não escolho um poema de António Cabral. Podia sempre escolher um poema de João Miguel Fernandes Jorge. Este por exemplo que tanto me perseguiu desde que em 1986 comprei em Évora «O Regresso dos Remadores»:
POEMAS
Aspectos perdidos
pequenas sombras em redor de poderosa imagem.
Aquilo que
distingue a palavra ave da palavra pássaro.
Pensando bem há tantos poemas que podia escolher. No Funchal andei na tropa ostensivamente a atravessar a parada com um livro no bolso da farda número dois que levava na capa o (imagine-se) título de «Sedução pelo Inimigo». Dos versos de Helder Moura Pereira aí sublinhados ainda estes os diria hoje de cor:
Não sei que mais retive da carta
de um amigo, talvez a frase riscada
no máximo da alegria dizendo a morte
mesmo que chegue breve está tão longe
de mim. (…)
Talvez António Cabral não devesse escrever versos que o nosso tempo não merece ("O castanheiro assiste velho / patriarca atento à ânfora / do teu pudor ao vinho novo") para que assim me fosse dado sem pudor deixar aqui de um dos seus livros um poema inteiro. Poderia ser um poema breve. Um poema como este não procurando muito:
OS NOSSOS GOVERNOS
Numa coisa os nossos governos têm sido escrupulosamente
cristãos: mantêm a agricultura pobre para cumprir a profecia de
Cristo que diz: pobres sempre os tereis convosco.
§
«Os dois grandes poetas do Douro – do Douro vinhateiro, entenda-se – são pois Miguel Torga e António Cabral. Um natural de S. Martinho de Anta (Sabrosa), outro de Castedo do Douro (Alijó), povoações circunvizinhas ambas da grande saga do vinho, têm à partida, um e outro poeta, este mérito não pequeno de cantarem o seu, quero dizer, pôr primeiramente a voz na realidade que os viu nascer e desde cedo lhes impressionou, pela sua magnitude, a sensibilidade.» (...) «Obviamente, nenhum deles se esgota no Douro" (...) "São ambos duas vozes poderosas, Torga e Cabral, duas vozes bem timbradas e cheias, substanciosas, empenhadas ambas no canto duriense, mas os olhos com que vêem o Douro são diferentes, e por isso diferente a voz com que o cantam.»
A. M. Pires Cabral, in Cesto da Gávea, Repórter do Marão, Amarante, 24-09-1993
§
José Carlos Barros nasceu em Boticas em 1963. É licenciado em Arquitectura Paisagista pela Universidade de Évora. Vive no Algarve, em Vila Nova de Cacela. A sua actividade profissional tem sido desenvolvida essencialmente nos domínios do ambiente e do ordenamento do território. Actualmente exerce funções públicas. É autor de, entre outros, os seguintes livros de poesia: “Pequenas Depressões” (em colaboração com Otília Monteiro Fernandes – 1984); “Uma Abstracção Inútil” (1991); “Todos os Náufragos” (1994); “Teoria do Esquecimento” (1995); “As Leis do Povoamento” (1996); “Las Moradas Inútiles” (edição bilingue, Punta Umbría, 2007; edição em castelhano, La Habana, Cuba, 2009). Está representado em diversas antologias e publicações colectivas. Venceu vários prémios literários, sendo-lhe atribuído em 2009 o Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama pelo livro (ainda inédito) “Os Sete Epígonos de Tebas”. Publicou, em prosa, “O Dia em que o Mar Desapareceu” (2003) e, em edição da Oficina do Livro, o romance “O Prazer e o Tédio” (2009). É autor do blogue Casa de Cacela.
POEMAS
Aspectos perdidos
pequenas sombras em redor de poderosa imagem.
Aquilo que
distingue a palavra ave da palavra pássaro.
Pensando bem há tantos poemas que podia escolher. No Funchal andei na tropa ostensivamente a atravessar a parada com um livro no bolso da farda número dois que levava na capa o (imagine-se) título de «Sedução pelo Inimigo». Dos versos de Helder Moura Pereira aí sublinhados ainda estes os diria hoje de cor:
Não sei que mais retive da carta
de um amigo, talvez a frase riscada
no máximo da alegria dizendo a morte
mesmo que chegue breve está tão longe
de mim. (…)
Talvez António Cabral não devesse escrever versos que o nosso tempo não merece ("O castanheiro assiste velho / patriarca atento à ânfora / do teu pudor ao vinho novo") para que assim me fosse dado sem pudor deixar aqui de um dos seus livros um poema inteiro. Poderia ser um poema breve. Um poema como este não procurando muito:
OS NOSSOS GOVERNOS
Numa coisa os nossos governos têm sido escrupulosamente
cristãos: mantêm a agricultura pobre para cumprir a profecia de
Cristo que diz: pobres sempre os tereis convosco.
§
«Os dois grandes poetas do Douro – do Douro vinhateiro, entenda-se – são pois Miguel Torga e António Cabral. Um natural de S. Martinho de Anta (Sabrosa), outro de Castedo do Douro (Alijó), povoações circunvizinhas ambas da grande saga do vinho, têm à partida, um e outro poeta, este mérito não pequeno de cantarem o seu, quero dizer, pôr primeiramente a voz na realidade que os viu nascer e desde cedo lhes impressionou, pela sua magnitude, a sensibilidade.» (...) «Obviamente, nenhum deles se esgota no Douro" (...) "São ambos duas vozes poderosas, Torga e Cabral, duas vozes bem timbradas e cheias, substanciosas, empenhadas ambas no canto duriense, mas os olhos com que vêem o Douro são diferentes, e por isso diferente a voz com que o cantam.»
A. M. Pires Cabral, in Cesto da Gávea, Repórter do Marão, Amarante, 24-09-1993
§
José Carlos Barros nasceu em Boticas em 1963. É licenciado em Arquitectura Paisagista pela Universidade de Évora. Vive no Algarve, em Vila Nova de Cacela. A sua actividade profissional tem sido desenvolvida essencialmente nos domínios do ambiente e do ordenamento do território. Actualmente exerce funções públicas. É autor de, entre outros, os seguintes livros de poesia: “Pequenas Depressões” (em colaboração com Otília Monteiro Fernandes – 1984); “Uma Abstracção Inútil” (1991); “Todos os Náufragos” (1994); “Teoria do Esquecimento” (1995); “As Leis do Povoamento” (1996); “Las Moradas Inútiles” (edição bilingue, Punta Umbría, 2007; edição em castelhano, La Habana, Cuba, 2009). Está representado em diversas antologias e publicações colectivas. Venceu vários prémios literários, sendo-lhe atribuído em 2009 o Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama pelo livro (ainda inédito) “Os Sete Epígonos de Tebas”. Publicou, em prosa, “O Dia em que o Mar Desapareceu” (2003) e, em edição da Oficina do Livro, o romance “O Prazer e o Tédio” (2009). É autor do blogue Casa de Cacela.
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