quarta-feira, março 31, 2010

OSVALDO MANUEL SILVESTRE acerca de BALTAZAR LOPES

«Proponho um poema, que sempre achei muito belo, do cabo-verdiano Baltasar Lopes, um admirável «homem de letras»: «Saudade de Parafuso», assinado pelo pseudónimo Osvaldo Alcântara e reunido em Cântico da Manhã Futura. Porque, como nos melhores momentos do autor, é um poema de recorte «clássico» que contudo se dedica, em cenário funerário, à perseguição do momento fugaz do presente enunciado e anunciado pelo «Hoje» inicial. A perseguição do momento irrepetível decorre porém num cenário de repetição e esvaziamento do palpável e, desde logo, do corpóreo. O «Hoje» de que se fala é o do rito anual da visita ao cemitério no dia de finados; e a paisagem soturna e ventosa transforma corpos em silhuetas, assim como transforma o mundo visível numa alegoria barroca em fundo: um memento mori, não tanto por Parafuso mas pelos que o vão lembrar. Saudades, pois, «de Parafuso»? Ou de nós, do instante irrepetível em que se declina a nossa mortalidade? Seguramente. Mas, antes disso, saudades daquele momento prévio a toda a escrita, e a toda a representação, em que o instante simplesmente é, em todo o poder da sua presença; ou em que nós simplesmente somos o instante. Esse momento que é o grande tema da literatura moderna, ou melhor, da literatura quando moderna. Se é que tal coisa – uma literatura realmente moderna, uma literatura do instante – pode de facto existir.»


Baltasar Lopes da Silva (Caleijão, São Nicolau, 23 de Abril de 1907 — Lisboa, 28 de Maio de 1989) foi um escritor, poeta e linguista de Cabo Verde que escreveu em português e em crioulo. Foi, com Manuel Lopes e Jorge Barbosa, fundador da revista Claridade. Em alguns dos seus poemas usou o pseudónimo Osvaldo Alcântara. O seu romance mais conhecido é Chiquinho (1947). Escreveu também uma descrição dos crioulos de Cabo Verde, O Dialecto Crioulo de Cabo Verde, Lisboa, Imprensa Nacional, 1957.

SAUDADE DE PARAFUSO

Para Arnaldo França

Hoje, dia de finados, meu amigo, fomos ao cemitério
visitar este nosso companheiro que morreu.
Na paisagem soturna de ventania e nuvens baixas
eram quase banais as nossas duas silhuetas,
você, de um lado do coval anónimo,
empunhando a sua coroa funerária de rosa-querela,
eu do outro, apenas com o meu coração túrgido
de tristeza pelo destino irrevogável dos homens.
Só agora entendo bem o nosso gesto de amigos.
O que nos levou àquela campa foi a nossa necessidade
de encontrar uma ressonância mais pura,
decantada pela viagem sem itinerário,
de onde a gente regressa sempre pelo que ficou de nós,
como um perfume, caro e persistente, que nos persegue
mesmo depois de se ter esgotado o seu inebriamento imediato.



Osvaldo Manuel Silvestre é professor do Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Tem leccionado cadeiras nas licenciaturas em Línguas e Literaturas Modernas e Estudos Portugueses e Lusófonos, na área da teoria da Literatura, em que se doutorou, e ainda na licenciatura em Estudos Artísticos (Estética, Arte e Multimédia, Introdução aos Novos Média, Análise de Filmes). Lecciona ainda, no actual Departamento de Ciências da Vida da Universidade de Coimbra, uma cadeira opcional de Antropologia e Literatura, em co-regência com Luís Quintais. Na pós-graduação leccionou cadeiras de Teoria da Literatura e de Literatura de Língua Espanhola (um curso sobre «Os Mundos de Borges»). Dirigiu a licenciatura de Estudos Portugueses e Lusófonos entre 2006 e 2009. Publicou ensaios e livros sobre questões de teoria, estética, literaturas de língua portuguesa, literatura comparada, artes e crítica cultural. Foi o coordenador da parte portuguesa da revista de poesia Inimigo Rumor, nos números em que a revista funcionou em parceria entre Brasil e Portugal. Coordenou também a iniciativa, patrocinada pelo Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra e pelo teatro Académico de Gil Vicente, Os Livros Ardem Mal , recentemente premiada pela LER/Booktailors. Dirige a editora Angelus Novus.

1 comentário:

Olinda Melo disse...

Encantada.Este poema de Baltasar veio provocar em mim a vontade de ver e ler aqui mais poemas de poetas caboverdianos.