quinta-feira, abril 01, 2010

FORTINBRAS acerca de ZBIGNIEW HERBERT

«Estou convencido que o Zbigniew Herbert escreveu o poema 'Elegia de Fortinbras' para mim. Esta ideia remonta a uma noite em que quase despachei uma garrafa de Jim Beam Black para provar a uma amiga que o meu fígado era mais robusto que a vontade que ela tinha de ver o 'Lendas de Paixão' em DVD. Não me lembro se a convenci. Tratando-se de um poema incluído num livro publicado em 1961, seria de esperar que versasse sobre a estranha cultura táctica de Czesław Krug. Surpreendentemente isso não acontece. 'Elegia de Fortinbras' é, ao que parece, a explicação mais perfeita sobre semiótica: “vivemos / em arquipélagos / e essa água essas palavras que podem elas fazer príncipe que podem”. É também, numa segunda camada, um poema sobre alguns jogadores do Sporting, senão veja-se: Abel – “sempre em sobressalto como num sono perseguias quimeras”; Rui Patrício – “As tuas mãos sempre que pensava nelas faziam-me sorrir”; Hélder Postiga – “das coisas humanas não sabias nada nem sequer respirar sabias”.


ELEGIA DE FORTINBRAS

Para C.M.

Agora que estamos sós podemos falar príncipe de homem para homem
ainda que estejas tombado nas escadas e vejas o mesmo que uma formiga morta
nada senão um sol negro com seus raios quebrados
As tuas mãos sempre que pensava nelas faziam-me sorrir
e agora que jazem sobre a pedra como ninhos derrubados
parecem tão indefesas como antes O fim é precisamente isto
As mãos caídas A espada caída Caída a cabeça
e os pés do cavaleiro enfiados em macias pantufas

Sem nunca teres sido soldado terás um funeral com honras militares
o único ritual que mais ou menos conheço
Não haverá círios nem cantos apenas mechas e tiros de canhão
crepes arrastados pelas ruas elmos botas cavalos salvas de artilharia
tambores e tambores nada de muito refinado eu sei
serão essas as minhas manobras antes de tomar o poder
há que agarrar a cidade pelo pescoço e sacudi-la um pouco

De qualquer modo terias que morrer Hamlet não foste feito para a vida
acreditavas em noções cristalinas e não no barro dos homens
sempre em sobressalto como num sono perseguias quimeras
mastigavas o ar com voracidade para depois o vomitar
das coisas humanas não sabias nada nem sequer respirar sabias

Agora alcançaste a paz Hamlet levaste a cabo o que te competia
e alcançaste
a paz O resto não é silêncio é antes pertença minha
escolheste o papel mais fácil o golpe elegante
mas o que é uma morte heróica comparada com a eterna vigília
tendo na mão uma fria maçã um alto cadeirão
com vista para o formigueiro e para a esfera do relógio

Príncipe adeus tenho assuntos a tratar a questão dos esgotos
o decreto respeitante a prostitutas e mendigos
há também que elaborar um melhor sistema prisional
já que tu próprio o disseste e bem a Dinamarca é uma prisão
Vou tratar dos meus assuntos Esta noite nasceu
uma estrela chamada Hamlet Aqui nos separamos
as coisas que deixarei ao morrer não serão dignas de uma tragédia

Pessoas como nós não se dão as boas vindas nem se despedem vivemos
em arquipélagos
e essa água essas palavras que podem elas fazer príncipe que podem


(tradução de José Miguel Silva publicada no blogue Ad Loca Infecta)



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Fortinbras é o alter-ego do autor do blogue Máscara & Chicote.

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