«Escolhi o poema 'As raparigas lá de casa', do meu falecido amigo, o poeta Emanuel Félix, que ainda há dias o Eugénio Lisboa recitava numa entrevista na Antena-1. O Emanuel é um grande poeta mas, porque publicou quase só na ilha (hoje tem um livro traduzido para inglês - 'The Possible Journey', tradução de John M. Kinsella, 2002), não é devidamente conhecido no Rectângulo.»
Emanuel Félix nasceu e faleceu em Angra do Heroísmo (24-10-1936 / 14-2-2004). Poeta, ensaísta, autor de contos e crónicas, crítico literário e de artes plásticas, foi considerado o introdutor do concretismo poético em Portugal, que cedo rejeitou, tendo passado pela experiência surrealista. Fundou e foi co-director da revista Gávea (1958). Foi co-director da revista Atlântida. Iniciou os seus estudos nos Açores, tendo, porém, feito quase toda a sua preparação técnico-profissional no estrangeiro, designadamente no Instituto Francês de Restauro de Obras de Arte (Paris), na Escola Superior de Belas-Artes de Anderlecht e na Universidade Católica de Lovaina, onde se especializou no Laboratório de Estudo de Obras de Arte por Métodos Científicos do Instituto Superior de Arqueologia e História da Arte da mesma Universidade. Os seus principais livros de poesia são o 'Vendedor de Bichos', Lisboa, 1965; 'Seis Nomes de Mulher', Angra do Heroísmo, 1985; 'O Instante Suspenso', Angra do Heroísmo, 1992; 'A Viagem Possível', Lisboa, 1993 e 'Habitação das Chuvas', Angra do Heroísmo, 1997, onde se inclui o poema "As raparigas lá de casa".
AS RAPARIGAS LÁ DE CASA
Como eu amei as raparigas lá de casa
discretas fabricantes da penumbra
guardavam o meu sono como se guardassem
o meu sonho
repetiam comigo as primeiras palavras
como se repetissem os meus versos
povoavam o silêncio da casa
anulando o chão os pés as portas por onde
saíam
deixando sempre um rastro de hortelã
traziam a manhã
cada manhã
o cheiro do pão fresco da humidade da terra
do leite acabado de ordenhar
(se voltassem a passar todas juntas agora
veríeis como ficava no ar o odor doce e materno
das manadas quando passam)
aproximavam-se as raparigas lá de casa
e eu escutava a inquieta maresia
dos seus corpos
umas vezes duros e frios como seixos
outras vezes tépidos como o interior dos frutos
no outono
penteavam-me
e as suas mãos eram leves e frescas como as folhas
na primavera
não me lembro da cor dos olhos quando olhava
os olhos das raparigas lá de casa
mas sei que era neles que se acendia
o sol
ou se agitava a superfície dos lagos
do jardim com lagos a que me levavam de mãos dadas
as raparigas lá de casa
que tinham namorados e com eles
traíam
a nossa indefinível cumplicidade
eu perdoava sempre e ainda agora perdoo
às raparigas lá de casa
porque sabia e sei que apenas o faziam
por ser esse o lado mau de sua inexplicável bondade
o vício da virtude da sua imensa ternura
da ternura inefável do meu primeiro amor
do meu amor pelas raparigas lá de casa
Onésimo Teotónio Almeida nasceu no Pico da Pedra, S. Miguel, Açores, no dia 18 de Dezembro de 1946. Professor Catedrático no Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros da Brown University, Providence, Rhode Island, EUA, de que foi director de 1991-2003. Lecciona na Brown desde 1975. Doutorado em Filosofia pela Brown University (1980), é Fellow do Wayland Collegium for Liberal Learning, um Instituto de Estudos Interdisciplinares na Brown University, onde lecciona uma cadeira sobre Valores e Mundividências. Publicou contos, teatro, crónicas, ensaios e prosemas. Entre as suas obras mais conhecidas encontram-se os livros "(Sapa)teia Americana" (1ª ed. 1983; 2ª ed. 2000, Lisboa, Salamandra), "No Seio Desse Amargo Mar" (Lisboa, Salamandra, 1991), "Que nome é esse, ó Nézimo? – E outros advérbios de dúvida" (Lisboa, Salamandra, 1994), "Rio Atlântico" (Lisboa, Salamandra, 1997), "Viagens na Minha Era" (Lisboa, Temas e Debates, 2001) e "Livro-me do Desassossego" (Lisboa, Temas e Debates, 2006). Fundou e dirige a editora Gávea-Brown. Desde 1979 mantém um programa sócio-cultural no Portuguese Channel, da Whaling City Cable-TV, de New Bedford, Massachusetts.
Leia mais sobre Onésimo Teotónio de Almeida, aqui.
Emanuel Félix nasceu e faleceu em Angra do Heroísmo (24-10-1936 / 14-2-2004). Poeta, ensaísta, autor de contos e crónicas, crítico literário e de artes plásticas, foi considerado o introdutor do concretismo poético em Portugal, que cedo rejeitou, tendo passado pela experiência surrealista. Fundou e foi co-director da revista Gávea (1958). Foi co-director da revista Atlântida. Iniciou os seus estudos nos Açores, tendo, porém, feito quase toda a sua preparação técnico-profissional no estrangeiro, designadamente no Instituto Francês de Restauro de Obras de Arte (Paris), na Escola Superior de Belas-Artes de Anderlecht e na Universidade Católica de Lovaina, onde se especializou no Laboratório de Estudo de Obras de Arte por Métodos Científicos do Instituto Superior de Arqueologia e História da Arte da mesma Universidade. Os seus principais livros de poesia são o 'Vendedor de Bichos', Lisboa, 1965; 'Seis Nomes de Mulher', Angra do Heroísmo, 1985; 'O Instante Suspenso', Angra do Heroísmo, 1992; 'A Viagem Possível', Lisboa, 1993 e 'Habitação das Chuvas', Angra do Heroísmo, 1997, onde se inclui o poema "As raparigas lá de casa".
AS RAPARIGAS LÁ DE CASA
Como eu amei as raparigas lá de casa
discretas fabricantes da penumbra
guardavam o meu sono como se guardassem
o meu sonho
repetiam comigo as primeiras palavras
como se repetissem os meus versos
povoavam o silêncio da casa
anulando o chão os pés as portas por onde
saíam
deixando sempre um rastro de hortelã
traziam a manhã
cada manhã
o cheiro do pão fresco da humidade da terra
do leite acabado de ordenhar
(se voltassem a passar todas juntas agora
veríeis como ficava no ar o odor doce e materno
das manadas quando passam)
aproximavam-se as raparigas lá de casa
e eu escutava a inquieta maresia
dos seus corpos
umas vezes duros e frios como seixos
outras vezes tépidos como o interior dos frutos
no outono
penteavam-me
e as suas mãos eram leves e frescas como as folhas
na primavera
não me lembro da cor dos olhos quando olhava
os olhos das raparigas lá de casa
mas sei que era neles que se acendia
o sol
ou se agitava a superfície dos lagos
do jardim com lagos a que me levavam de mãos dadas
as raparigas lá de casa
que tinham namorados e com eles
traíam
a nossa indefinível cumplicidade
eu perdoava sempre e ainda agora perdoo
às raparigas lá de casa
porque sabia e sei que apenas o faziam
por ser esse o lado mau de sua inexplicável bondade
o vício da virtude da sua imensa ternura
da ternura inefável do meu primeiro amor
do meu amor pelas raparigas lá de casa
Onésimo Teotónio Almeida nasceu no Pico da Pedra, S. Miguel, Açores, no dia 18 de Dezembro de 1946. Professor Catedrático no Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros da Brown University, Providence, Rhode Island, EUA, de que foi director de 1991-2003. Lecciona na Brown desde 1975. Doutorado em Filosofia pela Brown University (1980), é Fellow do Wayland Collegium for Liberal Learning, um Instituto de Estudos Interdisciplinares na Brown University, onde lecciona uma cadeira sobre Valores e Mundividências. Publicou contos, teatro, crónicas, ensaios e prosemas. Entre as suas obras mais conhecidas encontram-se os livros "(Sapa)teia Americana" (1ª ed. 1983; 2ª ed. 2000, Lisboa, Salamandra), "No Seio Desse Amargo Mar" (Lisboa, Salamandra, 1991), "Que nome é esse, ó Nézimo? – E outros advérbios de dúvida" (Lisboa, Salamandra, 1994), "Rio Atlântico" (Lisboa, Salamandra, 1997), "Viagens na Minha Era" (Lisboa, Temas e Debates, 2001) e "Livro-me do Desassossego" (Lisboa, Temas e Debates, 2006). Fundou e dirige a editora Gávea-Brown. Desde 1979 mantém um programa sócio-cultural no Portuguese Channel, da Whaling City Cable-TV, de New Bedford, Massachusetts.
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1 comentário:
O Emanuel Félix é um enorme poeta e um ser humano de uma enorme generosidade e grandeza... O espaço que deixou vago não tem substituto. Não, para mim.
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