
PARA USO DIÁRIO
Se a vida não fosse tão insubstituível
talvez ousássemos utilizá-la.
Porém arrumamo-la na prateleira
como um vistoso par de sapatos
que é bonito de se ver
mas não para uso diário.
Assim, continuamos por aí sentados
numa expectativa descalça.
§
CANÇÃO DA FORMIGA
Na compota de framboesa
da firma respeitada
jazia uma formiga.
Fiquei tão agradada:
uma formiga, uma verdadeira formiga,
uma formiga não listada nos "ingredientes"
a provar que existe verão.
Lá fora, a névoa do árctico caí espessa.
Cá dentro, uma formiga deitada no meu prato
como que fechada em âmbar.
As idades encontram-se.
Os espaços colidem.
Tempo da framboesa e espaço da framboesa
com o tempo do jornal e o espaço do pequeno-almoço.
E o tempo da formiga,
tão piedosamente contrariado pela compota
veio aterrar
num jarro.
Nem mesmo o Museu Nacional de História Natural
nos consegue surpreender tanto!
§
O FUNERAL
Na noite do funeral
eles abraçaram-me,
beijaram-me, mesmo esses
que habitualmente não beijam.
Apoiaram-me e perguntaram
se precisava de soporíferos,
estimulantes,
um xerez ou companhia para a noite.
Cada noite é um funeral
mas ninguém vem para me abraçar.
Ninguém pergunta como as coisas vão
se preciso de companhia para a noite,
um xerez, um soporífero.
Porque é apenas um dia como tantos
que morreu, e todos
temos que gerir isso o melhor que pudermos.
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