terça-feira, novembro 20, 2007

SÁNDOR CSOÓRI (2)

NDOR CSOÓRI (n.1930, Zámoly, Hungria) é provavelmente de entre os poetas húngaros que me foram dados a ler, aquele a cuja poesia mais vezes regresso. Diversas vezes premiado, é autor de numerosos livros de poemas, bem como de ensaios, novelas e argumentos para filmes. “Com Cisnes Sob o Fogo do Canhão”, é o livro de versões que Egito Gonçalves editou sobre tradução literal de Pál Ferenc e revisão de Mária Demeter (Limiar, 1997). Três poemas, com a devida vénia:



MEMÓRIA DA NEVE


Às vezes o Inverno muda de parecer
e começa a nevar,
neva espessamente, em desespero, como se temesse
não viver até o dia de amanhã.
Nestes casos é melhor desligar o telefone, a campaínha da porta,
pôr vinho a ferver em cima do fogão,
folhear cartas antigas
e olhar para trás, também, para a minha vida,
como se ela não tivesse acontecido.
Como se não me tivesse olhado o canhão, nem olhos lascivos,
como mão surradas, não se tivessem alongado pela minha mão;
e tudo que fosse polkítica, amor, dobre de sinos,
me esperasse de novo num horizonte de oceano.
Nestes casos o melhor é imaginar
que ainda posso chorar pela minha cabeça perdida,
o vento atrai os lilases para cima
de camas, meios-corpos e almofadas desgrenhadas,
e no juízo final terrestre
posso estar de pé ao lado de bons companheiros
em camisa macia e casaco leve
além de fumo, tascas, cemitérios,
fixando o olhar nos olhos dum país a perverter-se
sublimemente,
na minha cabeça há memória de neve,
neve, neve como se o reboco duma catedral
tombasse silenciosamente.


NO BAGO DE UVA DEIXADA CAIR NO PASSEIO


Neste ano também houve um Outono magnífico, um Novembro ensolarado
mas por toda a parte só velhos deambulavam de um lado
para o outro, interminavelmente,
mexiam-se com lentidão na forte luz solar
como punhos a debulhar milho.
Eu andava entre eles, cabeça baixa, no parque, nas avenidas.
Não queria que vissem: a morte lembra-me apenas
o teu corpo que sempre se torna de novo primaveril.
Foi isso que procurei no bago de uva caída no passeio:
ver se nele descobria a presença na rua
do teu dinamismo doce,
o teu sorriso a condizer com o céu
rodeado de folhas que borboleteiam espessamente, amarelas de morte.


§


POEMA A DUAS MULHERES AO MESMO TEMPO


Vocês vêm, tocam a campaínha,
passando a maçaneta rapidamente de uma para a outra.
Tu, loira, enlutada, de preto,
ela em saia azul de jeans, poída,
como quem após semanas molhadas até aos ossos
estivesse a enxugar-se no Maio inteiro num topo de colina.
Contigo vem também o bosque, também o cemitério,
países, com uma sensualidade oculta,
o mel,
a imprecação;
a anarquia reprimida do álcool
e enxames de moscas loucas
que dançam loucamente sobre a tua cabeça.
E não há Inverno, se vires, não há Verão,
há só febre dentro das costelas, imenso azul
e palavras a despirem-se na boca.
Ela chega sempre de improviso, apenas como quem traz
uma boa nova, como se trouxesse notícias de si própria.
A sua pestana: caniço preto,
em redor das suas ancas de uma vez duas Primaveras
e a sua boca abre-se para sorrir: como se um
comboio branco
passasse silenciosamente.

Vocês vêm, tocam a campainha, rindo uma para a outra
não suspeitando quem é que é a outra:
se amiga, companheira?
se amiga, amante?
mulher de limpeza dos sonhos?
pois as vossas caras só eu as enfrento, egoisticamente,
e brinco, ocultamente, com as vossas mãos também
na mesma cama,
ao mesmo tempo,
na mesma ausência -
das covas secas do mundo
ponho-me a rir, separadamente, por vosso gosto
e não me entristece ser isso uma condenação:
na minha morte serei,
sem falta, indivisível.


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