segunda-feira, janeiro 22, 2007

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA (3)

(actualizado)
Os poemas que se seguem têm uma história curiosa. Em Março de 1991 eu tinha 22 anos e dirigia a página de poesia do jornal da faculdade (I.C.B.A.S./Universidade do Porto), quando convidei o poeta José Tolentino Mendonça, então a estudar em Roma, para publicar na página de poesia “os olhos: pousados na mão”. Nessa altura, José Tolentino Mendonça havia apenas dado à estampa, no Funchal, “Os Dias Contados” (1990).

Encontrei hoje por acaso os três poemas que então me enviou, e que não chegaram a ser editados porque o jornal deixou de ser publidado por falta de verba. São poemas que José Tolentino Mendonça não incluíu em “A Noite Abre Meus Olhos” (Assírio & Alvim, Lisboa, 2006), muito provavelmente porque lhes perdeu o rastro. É da mais elementar justiça que complete, 15 anos passados, aquilo a que me propus e me comprometi. Três poemas inéditos escritos antes de 1991. Que sejam, também para ele, uma surpresa.



CONDITIO MORIENDI
a Arsenij Aleksandrovic Tarkovskij


Dos vultos

No baraço silencioso dos perigos
não se reconhece a morte
é inútil recuar perante a sombra
a morte é de nós
aquele que não tem sombra

Não temas os vultos
não ensombres os dedos
na decifração dos agouros
os mortos só enterram os seus mortos
devias saber

Melhor é correr de encontro ao cão
que mudo nos espera
ao fundo das ruas

e saudá-lo
como se faz a um amigo
e abraçá-lo
como se fossemos loucos


§


De Rubliev

Quando Rubliev morreu, o seu mestre, Danila Tchorny, não jejuou nem fez qualquer lamento. E a sua porta não conheceu o perfume alto dos ramos da árvore do incenso.
Então o ânimo dos seus discípulos vacilou. Que acontecia? Tchorny não amava Rubliev? Ele que fora o vigia fiel dos enigmas arriscados! Ele que sabia, de memória, o escondido desenho dos provérbios!
Por essa altura, Danila Tchorny, o mestre, foi designado para pintar o ícone do Criador, na cúpula do secular mosteiro de Troistsko.
Pintou Deus. Tão grande e brilhante. Os discípulos compreenderam.
Deus era a morada de Rubliev.


§


ainda Dos vultos

O coração
sábio apascentador
dos vultos
que pode temer

a nocturna visitação dos astros
o alvoroçado rumor
as aves
o tumulto que levanta
os mastros



1 comentário:

Júlio Pereira disse...

Respondendo ao comentário do jcfrancisco.
Um poema não é só de quem o faz é de todos os que o lêem. Tudo o que sentimos, todo o sentido que captamos dele é só nosso e já não pertence a quem o fez. O poema é uma partilha, uma dádiva de ser, de um tudo ou de nada.
O comentário a poemas é dos exercícios mais cuidados... Por outro lado, é dos exercícios mais naturais... um prolongar novo de algo que está completo e que na sua imperfeição toca no que de mais perfeito nós podemos inteligir.
Revela muita humildade quem tenta ou ousa dizer ou escrever uma só palavra, quando só o silêncio diz tudo!