Os poemas que se seguem têm uma história curiosa. Em Março de 1991 eu tinha 22 anos e dirigia a página de poesia do jornal da faculdade (I.C.B.A.S./Universidade do Porto), quando convidei o poeta José Tolentino Mendonça, então a estudar em Roma, para publicar na página de poesia “os olhos: pousados na mão”. Nessa altura, José Tolentino Mendonça havia apenas dado à estampa, no Funchal, “Os Dias Contados” (1990).
Encontrei hoje por acaso os três poemas que então me enviou, e que não chegaram a ser editados porque o jornal deixou de ser publidado por falta de verba. São poemas que José Tolentino Mendonça não incluíu em “A Noite Abre Meus Olhos” (Assírio & Alvim, Lisboa, 2006), muito provavelmente porque lhes perdeu o rastro. É da mais elementar justiça que complete, 15 anos passados, aquilo a que me propus e me comprometi. Três poemas inéditos escritos antes de 1991. Que sejam, também para ele, uma surpresa.
CONDITIO MORIENDI
a Arsenij Aleksandrovic Tarkovskij
Dos vultos
No baraço silencioso dos perigos
não se reconhece a morte
é inútil recuar perante a sombra
a morte é de nós
aquele que não tem sombra
Não temas os vultos
não ensombres os dedos
na decifração dos agouros
os mortos só enterram os seus mortos
devias saber
Melhor é correr de encontro ao cão
que mudo nos espera
ao fundo das ruas
e saudá-lo
como se faz a um amigo
e abraçá-lo
como se fossemos loucos
§
De Rubliev
Quando Rubliev morreu, o seu mestre, Danila Tchorny, não jejuou nem fez qualquer lamento. E a sua porta não conheceu o perfume alto dos ramos da árvore do incenso.
Então o ânimo dos seus discípulos vacilou. Que acontecia? Tchorny não amava Rubliev? Ele que fora o vigia fiel dos enigmas arriscados! Ele que sabia, de memória, o escondido desenho dos provérbios!
Por essa altura, Danila Tchorny, o mestre, foi designado para pintar o ícone do Criador, na cúpula do secular mosteiro de Troistsko.
Pintou Deus. Tão grande e brilhante. Os discípulos compreenderam.
Deus era a morada de Rubliev.
§
ainda Dos vultos
O coração
sábio apascentador
dos vultos
que pode temer
a nocturna visitação dos astros
o alvoroçado rumor
as aves
o tumulto que levanta
os mastros
Encontrei hoje por acaso os três poemas que então me enviou, e que não chegaram a ser editados porque o jornal deixou de ser publidado por falta de verba. São poemas que José Tolentino Mendonça não incluíu em “A Noite Abre Meus Olhos” (Assírio & Alvim, Lisboa, 2006), muito provavelmente porque lhes perdeu o rastro. É da mais elementar justiça que complete, 15 anos passados, aquilo a que me propus e me comprometi. Três poemas inéditos escritos antes de 1991. Que sejam, também para ele, uma surpresa.
CONDITIO MORIENDI
a Arsenij Aleksandrovic Tarkovskij
Dos vultos
No baraço silencioso dos perigos
não se reconhece a morte
é inútil recuar perante a sombra
a morte é de nós
aquele que não tem sombra
Não temas os vultos
não ensombres os dedos
na decifração dos agouros
os mortos só enterram os seus mortos
devias saber
Melhor é correr de encontro ao cão
que mudo nos espera
ao fundo das ruas
e saudá-lo
como se faz a um amigo
e abraçá-lo
como se fossemos loucos
§
De Rubliev
Quando Rubliev morreu, o seu mestre, Danila Tchorny, não jejuou nem fez qualquer lamento. E a sua porta não conheceu o perfume alto dos ramos da árvore do incenso.
Então o ânimo dos seus discípulos vacilou. Que acontecia? Tchorny não amava Rubliev? Ele que fora o vigia fiel dos enigmas arriscados! Ele que sabia, de memória, o escondido desenho dos provérbios!
Por essa altura, Danila Tchorny, o mestre, foi designado para pintar o ícone do Criador, na cúpula do secular mosteiro de Troistsko.
Pintou Deus. Tão grande e brilhante. Os discípulos compreenderam.
Deus era a morada de Rubliev.
§
ainda Dos vultos
O coração
sábio apascentador
dos vultos
que pode temer
a nocturna visitação dos astros
o alvoroçado rumor
as aves
o tumulto que levanta
os mastros
1 comentário:
Respondendo ao comentário do jcfrancisco.
Um poema não é só de quem o faz é de todos os que o lêem. Tudo o que sentimos, todo o sentido que captamos dele é só nosso e já não pertence a quem o fez. O poema é uma partilha, uma dádiva de ser, de um tudo ou de nada.
O comentário a poemas é dos exercícios mais cuidados... Por outro lado, é dos exercícios mais naturais... um prolongar novo de algo que está completo e que na sua imperfeição toca no que de mais perfeito nós podemos inteligir.
Revela muita humildade quem tenta ou ousa dizer ou escrever uma só palavra, quando só o silêncio diz tudo!
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