O recente post sobre Edgar Lee Masters levou-me a procurar na Estante dois autores em cujo tom encontro afinidades pontuais com o americano, designadamente na utilização de personae literárias, uso de outra identidade que fala através do poeta, permitindo-lhe maior liberdade e criatividade.
MAX AUB nasceu em Paris em 1903, filho de pai alemão e de mãe francesa. Mudou-se para Valencia em 1914, com o eclodir da primeira grande guerra, tendo então adoptado o espanhol como língua de criação. Viveu no México mais de trinta anos, onde faleceu em 1972. Novelista, dramaturgo, ensaista e poeta, escreveu "Crimes Exemplares" (Antigona, Lisboa, 1995), onde - diversamente de Lee Masters que coloca a confissão na boca de mortos, - Aub transforma depoimentos de prisioneiros em poemas: hinos à indiferença, à impaciência mas, principalmente, à intolerância. Com tradução de Jorge Lima Alves, eis, com a devida vénia, alguns destes poemas em prosa poética. "Crimens Ejemplares", foi publicado originalmente no México em 1956.
Sou barbeiro. É uma coisa que pode acontecer a qualquer pessoa. Quero dizer que até esse dia fui um bom barbeiro. Cada qual tem as suas manias, eu não gosto de borbulhas.
Aconteceu assim: comecei a barbeá-lo calmamente, ensaboei-o com habilidade, afiei a navalha no braço da cadeira e suavizei-a na palma da mão. Sou um bom barbeiro! Nunca cortei ninguém e ainda por cima esse tipo não tinha uma barba muito espessa. Mas tinha borbulhas. Devo reconhecer que nas suas borbulhas não havia nada de especial, no entanto, incomodavam-me, enervavam-me, revolviam-me as tripas.
A primeira, contornei-a bem, sem grande dificuldade, mas a segunda começou a sangrar. Então, não sei o que me deu, acho que é uma coisa muito natural, aprofundei a ferida e depois, sem poder deixar de o fazer, com um só golpe, cortei-lhe a cabeça.
*****
Começou a mexer o café com leite com a colherzinha. O líquido quase transbordava da chávena empurrado pelo movimento do utensílio de alumínio (o recipiente era vulgar, o sítio era ordinário e a colher estava arredondada pelo uso). Ouvia-se o barulho do metal contra o vidro. Tim, tim, tim, tim. E o café com leite girava, girava com uma cova no meio. Um maelstrom. E eu encontrava-me sentado mesmo à frente. O café estava à pinha. O homem continuava a mexer, a mexer, imóvel, e sorria ao olhar-me. Senti uma coisa subir por mim acima. Fitei-o de tal maneira que se viu na obrigação de se explicar:
- O açúcar ainda não está derretido.
Para mo provar, bateu com a colher várias vezes no fundo do copo. Recomeçou a mexer metodicamente a beberagem, com uma energia redobrada. Voltas e mais voltas, sem parar, eternamente. Voltas e mais voltas e mais voltas. E continuava a olhar para mim, sorrindo. Então puxei da pistola e disparei.
*****
Era de caras! A única coisa que tinha a fazer era empurrar a bola, com o guarda-redes completamente fora da baliza... E atirou-a por cima da trave! Um golo que teria sido decisivo! Nós estávamo-nos absolutamente nas tintas para esses miseráveis da Napolera. Espero, pelo menos, que o pontapé que lhe dei, e que o mandou para os anjinhos, o tenha ensinado a rematar como Deus manda.

JOSÉ RICARDO NUNES (Lisboa, 1964) é licenciado em Direito e exerce funções no Ministério da Justiça. Mestre em Literatura e Cultura Portuguesas (Época Contemporânea), publicou "Na Linha Divisória" (Campo das Letras, 2000), obra à qual foi atribuido o Grande Prémio Eugénio de Andrade 2000, e "Novas Razões" (Gótica, 2002). O seu primeiro livro, porém, foi "Rua 31 de Janeiro (algumas vozes)" (&etc, Lisboa, 1998), que resultou, adivinhamos, de uma experiência literária directamente influenciada pela sua actividade profissional, dado o autor trabalhar no Instituto de Reinserção Social de Reclusos de Caldas da Rainha. Alguns poemas:
quando o guarda abre de manhã a minha cela
dizendo as horas sempre à mesma hora
as mãos tremem por uma dose
de pó um sol para queimar
o tempo vendido aos pacotes
desde que me transferiram para aqui
condenado injustamente a dezoito anos
deixei de sonhar com a liberdade
mas antes de em vão tentar provar a minha inocência
de me ter esgotado nos recursos
eu era um outro homem
recebia visitas e correspondência da família
confiante sonhava com os olhos da patrícia
*****
quando os meus pais souberam
que fora eu quem assaltara a igreja
roubando o dinheiro das esmolas
para pagar aos amigos copos de vinho
e que até desfigurara o rosto dos santos
em meu nome pediram desculpa ao padre
e mandaram rezar missa
como se estivesse morto
*****
chegava a roubar oito automóveis só
numa noite ao volante apertava
outras mãos nas minhas e sobrepondo
as impressões digitais imaginava
o nome a idade quem seria
o condutor e guiava como ele
por momentos vivendo a sua vida
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