Visitei hoje “La Simultanée”, a casa de praia em Vila do Conde onde Sonia e Robert Delaunay viveram com Eduardo Vianna (1881-1967) e o americano Sam Halpert durante cerca de dois anos, de 1915 a 1917, e a partir de onde se corresponderam com poetas e pintores portugueses como José de Almada-Negreiros (1893-1970) e Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918), entre outros... A relação dos Delaunay com a poesia sempre foi estreita. Um exemplo: em 1906, com 21 anos, Robert Delaunay (1885-1941) apresentou no Salon des Indépendants de Paris, as obras que havia pintado no verão anterior na Bretanha. Foi esse o gatilho para a amizade que veio a desenvolver com o pintor e aduaneiro Henri Rousseau (1844-1910). Embora Rousseau não tenha sido um dos pintores cuja obra maior influência veio a exercer sobre Robert - ao contrário de Cézanne, por exemplo - os dois franceses encetaram desde cedo uma duradoira e profunda amizade que só a morte de Rousseau viria a talhar, no outono de 1910. Por essa altura, já Guillaume Appolinaire era intimo do casal Delaunay. Jorge Sousa Braga traduziu em “O Século das Nuvens” (Fenda, 1989), o epitáfio que Appolinaire escreveu como última homenagem a Henri Rousseau:
INSCRIÇÃO PARA A SEPULTURA DO PINTOR HENRI ROUSSEAU ADUANEIRO
Gentil Rousseau que nos escutas
Nós te saudamos
Delaunay a sua mulher o senhor Querval e eu
Deixa passar sem pagar direitos as nossas
bagagens pelas portas do céu
Levar-te-emos pincéis tintas e telas
Para que os teus ócios sagrados ali na luz real
Os possas consagrar a pintar como quando fizeste
o meu retrato
O rosto das estrelas
INSCRIÇÃO PARA A SEPULTURA DO PINTOR HENRI ROUSSEAU ADUANEIRO
Gentil Rousseau que nos escutas
Nós te saudamos
Delaunay a sua mulher o senhor Querval e eu
Deixa passar sem pagar direitos as nossas
bagagens pelas portas do céu
Levar-te-emos pincéis tintas e telas
Para que os teus ócios sagrados ali na luz real
Os possas consagrar a pintar como quando fizeste
o meu retrato
O rosto das estrelas
Outro exemplo: em 1913, Sonia Delaunay (1885-1979) conhece Blaise Cendrars (1887-1961, pseudónimo de Frédéric Louis Sauser, na foto pintado por Modigliani). Numa colaboração inédita (e laboriosamente manual), Sonia ilustrou o longo poema de Cendrars “Prose du Transibérien et de la Petite Jehanne de France”, aguarela sobre papel impresso numa folha única de dois metros, dobrada como um harmónio. Quando, mais tarde, Sonia aparece no “Le Bal Bullier” - sala de dança onde a boémia parisiense se encontrava quase às escondidas para dançar tango - fazendo furor no seu primeiro “robe simultanée”, Cendrars fica fascinado com os padrões simultâneos coloridos e dedica-lhe o seguinte poema (tradução minha):
SUR LA ROBE ELLE A UN CORPS
Le corps de la femme est aussi bosselé que mon crane
Glorieuse
Si tu t'incarnes avec esprit
Les couturiers font un sot métier
Autant de la phrénologie
Mes yeux sont des kilos qui pèsent la sensibilité des femmes
Tout ce qui fuit, saille avance dans la profondeur.
Les étoiles creusent le ciel
Les coulours déshabillent
Sur la robe elle a un corps
Sous les bras des bruyéres mains lunules et pistils quand
les eaux se déversent dans le dos avec les
omoplates
glauques
Le ventre un disque qui bouge
La double coque des seins passe sous le pont des arcs-en-ciel
Ventre
Disque
Soleil
Les cris perpendiculaires des couleurs tombent sur les cuisses.
SOBRE O VESTIDO ELA TEM UM CORPO
O corpo da mulher é redondo como meu crânio
Glorioso
Se se está possuído de espírito
Os costureiros fazem um trabalho idiota
Tanto quanto a frenologia
Meus olhos são os quilos que pesam a sensibilidade das mulheres
Tudo o que foge, destaca e avança na profundidade.
As estrelas esvaziam o céu
As cores despem-se
Sobre o vestido ela tem um corpo
Sob os braços as urzes mãos lúnulas e pistilos quando
as águas se vertem sobre as costas com as
omoplatas
glaucas
A barriga um disco que se move
A concha dupla dos seios passa sob a ponte dos arcos-íris
Ventre
Disco
Sol
Os gritos perpendiculares das cores caem sobre as coxas.
§
PS (Portugal Sui-generis) – Nem tentem visitar a Casa Museu José-Régio, em Vila do Conde, num sábado. Está fechada!
5 comentários:
Mas que interesse pode haver em visitar a casa museu zé régio, num sábado ou noutro dia qualquer? Se nem a poesia dele é já visitável...
Caro José Miguel Silva,
Os caminhos de massificação que caracterizam a contemporaneidade deste país - e a tua poesia é particularmente feliz nesse diagnóstico, - têm tido o condão desse me incitar a revisitar cada vez mais a tradição.
Tenho necessidade disso. Talvez pela necessidade de me resituar, não sei. Isso têm-se passado quer a nivel de leituras menos recentes - que me vejo a cotejar com coisas de agora, - quer, imagina!, a nivel da geografia.
Obrigado pela tua visita. Um abraço amigo
JLBG
Telegrama: Gostei do blog Stop Volto em breve Stop
Muito bom blog.
parabens
ainda bem que voltaste ao blog. já me faziam falta as boas indicações de poesia. e obrigada pelo aviso sobre a Casa José Régio. espero que esteja aberta noutros dias, pq qd lá fui, há un anos, era preciso chamar a pessoa q tinha a chave:)
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