segunda-feira, setembro 11, 2006

O FIM DO VERÃO DE NOVA IORQUE

Crónica de João Luís Barreto Guimarães

Setembro de 2001

*****

O que desmentidamente começou por ser a forma de enviar notícias, próximas e surreais, sobre a pressa dos acontecimentos, desde cedo assumiu a forma de um diário e, talvez pelo dia três, a urgência de uma crónica. Literária, por isso, finita.

Ao rever o conjunto das mensagens enviadas, constatei que fui perdendo o ímpeto de escrever. Assim vivi o meu luto. Ávido de instantâneos, como os perseguiu Barthes, arrisquei tocar a quente o rastro da situação. Pela vontade de escrita. O que ocorreu na manhã daquele onze de Setembro, foi para mim tão complexo e tão sem precedentes, que sobra-me a amarga consciência de apenas aqui trazer uma colecção de migalhas. Mas é sempre isso o que fica.

Alguma da edição aos
emails originais, não os ousou desviar da verdade da escrita, somente reeducar o ritmo da respiração. A quase totalidade dos textos foi alvo de escrita difícil, a melhor parte das vezes em situações precárias: tanta vez de madrugada recorri ao hospital, para reinventar o Português num teclado sem acentos, quando o mais fácil de tudo não era a feroz segurança nem tão pouco a minha dança em passo descompassado, com as câmaras de vigilância dos corredores do hospital.

Apenas para enviar fragmentos. Fragmentos, é o que são.

*****

Setembro 11, Terça-feira, Dia 1

11 h 40 m
Desço em direcção ao hospital ante um cenário surrealista. O que costumava ser uma artéria calma e ordeira, encontra-se agora envolta na mais tensa agitação. Ao longe sobre Downtown, um imenso cogumelo encobre parte da cidade. Centenas de pessoas fogem em passo apressado para a parte mais alta da ilha. Em cada um desses rostos está cravado o terror, um pânico que atravessa toda e qualquer raça. Nas cabinas telefónicas fazem-se filas para ligar. As mães sobem a avenida extraordinariamente abraçadas às crianças resgatadas, que vão insistindo em perguntas que não têm explicação. O metro foi imobilizado. A ilha está isolada. As sirenes de ambulância alarmam por toda a parte. Rostos tensos, mudos, perturbados vêem de facto, a chorar de revolta e indignação. É difícil descrever o medo. À porta dos edifícios agrupa-se gente em silêncio, a mão amparando o estômago sem saber o que falar.
A América foi atingida aos olhos de todo o mundo. Não há deus que queira isto.

14 h 35 m
Nova Iorque arde como uma tocha, conferindo ao cenário um ambiente de guerra. É um panorama desolador. As pessoas, aqui e além, começam finalmente a acreditar que isto, de facto, aconteceu. Que a América foi atacada num acto com implicações para todos os países do mundo. Que há centenas, milhares de vítimas. Que os prejuízos são astronómicos. Sabe-se que o presidente está reunido com militares. Espera-se uma resposta cirúrgica.
As cirurgias de hoje foram canceladas. Tenho andado pelo bloco com os dois olhos nas notícias mas nem os próprios repórteres parecem saber o que acrescentar. Os médicos e os enfermeiros vão recebendo telefonemas dos familiares próximos que trabalham em Downtown. Uma auxiliar, percebi, perdeu alguém. Conta-se que algumas vítimas se lançaram das janelas quando o primeiro avião pegou fogo ao edifício. As notícias dividem-se entre os apelos para dádivas e reportagens sobre feridos que vão chegando aos hospitais. Somos informados das baixas mas ninguém pode esclarecer se o tempo que mediou entre os embates foi suficiente para evacuar os funcionários dos prédios. As baixas poderão ser imensas. Os detritos, pelas ruas, são numerosos. As imagens da queda das torres passam vezes sem conta nos ecrãs de televisão. Alguns poderão ver nisso a derrocada de um país. Outros, a queda de um símbolo.
Os carros circulam pelas ruas encobertos por cinza. Deseja-se visão clara aos políticos.

17 h 35 m
Apresentei-me com a equipa de Cirurgia Plástica e Reconstrutiva no New York Cornell Medical Center, onde se localiza a maior unidade de queimados de Nova Iorque. O Cornell está na 68, mesmo em frente ao Memorial Sloan-Kettering Cancer Center, o hospital onde me encontro a estagiar. Aparentemente, só agora é que as ambulâncias estão a conseguir chegar perto dos destroços das torres, e os feridos, oito horas depois, a ser retirados dos escombros. No serviço de urgência do New York Presbyterian Hospital, anexo ao Cornell, fomos encontrar centenas de médicos e enfermeiros divididos por equipas, numa enorme sala de emergência com pelo menos 25 equipas a postos. Nunca tinha visto nada assim.
A ansiedade é muita, a vontade de ajudar também. Um dos meus colegas, Julian G., deslocou-se ao Saint Vincents Hospital para dar uma ajuda nos casos de trauma. Um outro, Charles G., canadiano, foi fazer triagem para Downtown. O terceiro, Mark K., encaminhou-nos até ao chefe da unidade de queimados para nos voluntariarmos para o que fosse necessário. Foi-nos dito que, para já, existem médicos suficientes. Têm a unidade cheia: os doentes mais graves que receberam foram cinco queimados em cerca de 95 por cento da superfície corporal atingida. A maior parte das vítimas tem lesões de inalação, o que soma percentagem à superfície corporal queimada exigindo, certamente, ventilação assistida. Têm um péssimo prognóstico. Ficámos de voltar à unidade porque julgam que dentro de horas, quando começarem a chegar mais feridos roubados aos escombros, vão ser necessárias novas equipas.
Volto ao Memorial, on call.

21 h 15 m
Sai de novo, para doar sangue. O movimento na urgência é agora mais contido, o que é por todos interpretado como um muito mau sinal. Subi à unidade de queimados para a visita médica. São cerca de trinta camas. Acompanhei a visita, identificado na lapela, e pude-me aperceber de que eram todos adultos os doentes internados. Desci depois à urgência para tentar doar sangue. Foi-me fornecido um número para ligar pela manhã. Hoje não há capacidade logística para o colher.
Olho pela janela do bloco e as ruas estão desertas. É quase noite lá fora. Ainda se ouve uma ou outra sirene de ambulância mas antevejo agora tempos de profundo silêncio. De longamente chorar os mortos.
Impossível ficar indiferente.

23 h 20 m
A baixa ainda arde. E trago em mim a sensação de não ter feito quase nada. A incómoda evidência não ter como ajudar.

Sem comentários: