sábado, agosto 19, 2006

SÁNDOR CSOÓRI

A poesia de SÁNDOR CSOÓRI (nascido em 1930, em Zámoly, pequena aldeia a Oeste da Hungria que mudou de mãos entre alemães, húngaros e russos por 17 vezes, durante a IIª Guerra Mundial), é uma poesia estranha e aparentemente fria, no sentido em que se torna desconfortável porque envolvida politicamente com o longo sofrimento do povo húngaro. Fazendo uso de apontamentos surrealistas, simbolistas e até futuristas (“oh, fins-de-semana! / oh, domingos! / oh, Casas Brancas! Parlamentos! / das vossas conchas de caracol por toda a parte / deslizam tanques / e na sua trilha mucosa caem de costas os poetas”), é todavia na abundante riqueza imagística e metafórica que reside a sua complexidade e diversidade, pese embora o seu tom confessional a torne aparentemente mais próxima do leitor. Da antologia de Sandor Csoóri, “Com Cisnes Sob o Fogo do Canhão”, versões de Egito Gonçalves sobre tradução literal de Pál Ferenc e revisão de Mária Demeter (Limiar, 1997), seleccionei, com a devida vénia, o poema que se segue. Deve ser lido duas vezes.



NEM SEQUER OS POETAS

Há tantos poemas como gente nas ruas para peões.
Chegam, avançam, dão empurrões,
e às vezes apertam-me o coração contra a parede.
Algum deles é como uma cabeça rapada
de freira jovem: está ardente em torno dele
o Verão, a sensualidade sufocante do mundo perdido,
a nudez de virilhas, de ventres e de coxas.
Outro é um esqueleto sonâmbulo, mas
chega com sombrinha do Sul, nos tornozelos
chocalhos de cobre e mãos secas de crianças de peito.
Dançarino macabro da antiga Veneza? Ou o da
Bósnia bélico-pestífera? Ranger de lança-minas,
de sinos, canhões, matracas como rodas de moinho de vento,
acompanham-lhe a dança. Mas quem se detém
nas praças, ao pé das estátuas
alarmadas, a fim de sentir arrepios?
Quem acende os seus cabelos vivos para que
o horror e o amor se ponham de pé
juntamente? Nem sequer os poetas! Nem sequer eles!
Até os poetas vadiam apenas pelas ruas,
sozinhos, como quem já viveu alguns
fins do mundo. Se eu não soubesse onde pernoitam
e onde fumam o seu último cigarro
envenenado depois da meia-noite, até eu poderia
acreditar que são estranhos passageiros em trânsito.

4 comentários:

Poetas Almadenses disse...

A poesia é pura magia...

magarça disse...

Gostei muito. Obrigada pela revelação.

Orlando Duque disse...

Bonito poema. Gostei!

Abraço

SCS disse...

Às vezes as coisas chegam-nos assim, como que por acaso, e entram no estado solitário que se herda sem querer.

Li o poema, lá está, penso eu como que por acaso.
Mas foi ele quem me explicou o dia que acabei de ter.

Não consigo deixar de me enrolar numa vénia quando percebo que por detrás deste Blog está mais um estranho passageiro em trânsito.