sábado, agosto 19, 2006

ENDRE KUKORELLY

Uma das características mais marcantes na poesia de ENDRE KUKORELLY (Budapeste, 1951), é a de os seus poemas avançarem por proposições lógicas sucessivas, entre ironia e absurdo, num tom falsamente infantil que não esconde um profícuo gosto pela surpresa e pela irrisão, desfocando escalas de importância e desmontando figuras da história da Hungria. Essa é igualmente uma das estratégias patognomónicas da poesia do leste europeu como já aqui tinha escrito a propósito do poeta russo Danil Harms. Os dois poemas que se seguem foram retirados, com a devida vénia, de “Um Jardim de Plantas Medicinais” (Quetzal, 1997), tradução colectiva (Mateus, Abril de 1995), revista, completada e apresentada por Fernando Pinto do Amaral, com a colaboração de Maria Démeter.


EXERCÍCIOS REAIS

Eu não gostava de ser rei.
Os reis praticamente
não têm vida própria. Têm sempre
que ter juízo, têm sempre que
prestar atenção. E não se pode estar sempre
com atenção. Sempre a cumprimentar.
Máquina de cumprimentos. Máquina
de apertar mãos. Não pode calçar
quaisquer sapatos. Ele bem queria
os azuis. Mas não pode. Porque tem
de calçar os castanhos. Houve alguém
que inventou isto. Tomam conta
do rei. E também ele
toma conta de si. Para não
sujar a camisa. Tem logo que
vestir outra. Da reserva.
Camisas de serviço. Tem à mão
a reserva. Nem uma pedrinha
pode ter na sopa. No entanto,
uma vez encontrou uma
no puré de legumes. O cozinheiro
ficou tramado. Não o tramem. No fundo,
o rei sentiu-se feliz por encontrar
uma pedra no puré de legumes.
Não tinha ideia de encontrar
fosse o que fosse no puré de legumes.
E logo uma pedra! Até que enfim,
alguma coisa lhe aparecia na sopa.
Enfim, alguma coisa. Aconteceram
coisas. É certo que quase cuspiu
um dente. Esteve quase
para partir um dente. E
afinal não partiu. Ficou
a abanar, mas ficou lá.
Chamaram o cozinheiro.
Mostraram-lhe a pedra.
Dias a fio o pobre cozinheiro
andou mesmo desesperado.
Ainda bem que nada de mal
aconteceu. Rapidamente tudo
foi esquecido. Esqueceram.
Este caso também.
E não se falou mais nisso.


§


HENRIQUE I, O PÁSSARO

Henrique I, o Pássaro, era um rei muito seco.
Por exemplo, nunca bebeu. Comer, comeu, mas nunca bebeu.
Nem vinho nem cerveja. Nem aguardente.
Nem um grogue.
Não era inimigo do álcool, não bebia álcool porque não bebia nada.
Limitava-se a comer. Nem um gole de água bebeu em toda a sua vida.
Chegava mesmo a odiar a água, nem conseguia olhar para ela. Ao
meter as mãos na água, brrr. Nem pensar, porque quando o fazia logo
lhe apareciam borbulhinhas lilases. Assim, odiava exclusivamente a
água; por exemplo, já não detestava tanto a aguardente. Mas não a
bebia. Também a detestava, mas não tanto. Portanto, odiava a água.
Ficava sempre com aquelas borbulhas. Mas também não bebia leite,
nem sumo de laranja, nada.
Nem coca-cola.
Mas ainda não existia coca-cola, e mesmo que existisse não a beberia.
Não beberia. Antes cuspi-la.
Mas comia.
É verdade que não comia de tudo. Por exemplo, sopa não comia.
Comia muitas coisas, mas sopa não. Assim vivia. Era capaz de comer
imenso. Só não bebia. Comia. Era o seu maior prazer. Era um rei
esquisito. Um caso bastante estranho. Coisas que acontecem.

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