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NEM SEQUER OS POETAS
Há tantos poemas como gente nas ruas para peões.
Chegam, avançam, dão empurrões,
e às vezes apertam-me o coração contra a parede.
Algum deles é como uma cabeça rapada
de freira jovem: está ardente em torno dele
o Verão, a sensualidade sufocante do mundo perdido,
a nudez de virilhas, de ventres e de coxas.
Outro é um esqueleto sonâmbulo, mas
chega com sombrinha do Sul, nos tornozelos
chocalhos de cobre e mãos secas de crianças de peito.
Dançarino macabro da antiga Veneza? Ou o da
Bósnia bélico-pestífera? Ranger de lança-minas,
de sinos, canhões, matracas como rodas de moinho de vento,
acompanham-lhe a dança. Mas quem se detém
nas praças, ao pé das estátuas
alarmadas, a fim de sentir arrepios?
Quem acende os seus cabelos vivos para que
o horror e o amor se ponham de pé
juntamente? Nem sequer os poetas! Nem sequer eles!
Até os poetas vadiam apenas pelas ruas,
sozinhos, como quem já viveu alguns
fins do mundo. Se eu não soubesse onde pernoitam
e onde fumam o seu último cigarro
envenenado depois da meia-noite, até eu poderia
acreditar que são estranhos passageiros em trânsito.
4 comentários:
A poesia é pura magia...
Gostei muito. Obrigada pela revelação.
Bonito poema. Gostei!
Abraço
Às vezes as coisas chegam-nos assim, como que por acaso, e entram no estado solitário que se herda sem querer.
Li o poema, lá está, penso eu como que por acaso.
Mas foi ele quem me explicou o dia que acabei de ter.
Não consigo deixar de me enrolar numa vénia quando percebo que por detrás deste Blog está mais um estranho passageiro em trânsito.
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