(actualizado)
Rui Pires Cabral nasceu em Outubro de 1967 em Macedo de Cavaleiros. Licenciou-se em História-Arqueologia em 1990. Publicou em 1985 um livro de contos mas foi através da poesia que a sua escrita atingiu um assinalável grau de maturidade. A toada mais abstracta do seu primeiro livro deu lugar nos mais recentes, a uma poesia metonímica e figurativa quantas vezes surpreendente, onde as viagens, as cidades e a música são pretexto para uma escrita prosódica muito nítida. Rui Pires Cabral não esconde um gosto por um presente concreto no que de episódico e narrativo possa ter, e onde o mais pequeno acontecimento ou cena citadina serve para dele extrair um poema. Assim acontece por exemplo com "Alexandra Road", mas também com este extraordinário "Shirley Ann Eales".
OBRA POÉTICA
Geografia das Estações, edição de autor, Vila Real, 1994
A Super-Realidade, edição do autor, Vila Real, 1995
Música Antológica & Onze Cidades, Presença, Lisboa, 1997
Praças e Quintais, Averno, Lisboa, 2003
Longe da Aldeia, Averno, Lisboa, 2005
Capitais da Solidão, Teatro de Vila Real, 2006
Oráculos de Cabeçeira, Averno, 2009
SHIRLEY ANN EALES (2005)
Na vitrina lê-se Livros Raros
e Usados sob o azul inclinado
de um toldo – mesmo em frente
à glacial cafetaria de franchise
onde o dia destrata o desejo
e não se pode fumar. Subo
aos pequenos gabinetes
mergulhados no doce bafio
da literatura e percorro de A
a Z as espinhas estreitas
e rachadas da poesia. É o sítio
mais vazio de Novembro
e o que mais me reconforta;
o livro que escolho, por metade
de uma libra, traz no frontispício
um nome e uma morada: Shirley Ann
Eales, de Scottsville – um sumido
autógrafo de maiúsculas magras
e triangulares onde a imaginação
encontra por enquanto pretexto
e oxigénio suficientes para arder.
O livro teve outra existência,
pertenceu a outra casa, a outra mesa
de cabeceira – e o pensamento,
de tão óbvio, conjura de repente
uma vertigem, é um corredor
abrupto para a imensidão do mundo
onde trafica o acaso. Ah, sabemos
que a vida é improvável se damos
por nós a cismar, a meio de uma tarde
insípida, numa mulher desconhecida
que lia poemas em Scottsville, nos anos
70. Mas haverá aqui alguma espécie
de sentido, algum sinal guardado
para alguém mais sábio ou inocente
do que eu? Não sei quem és
nem onde estás agora, Shirley Ann,
mas como seria belo se pudesses
um dia encontrar, por obra da mesma
sorte, o teu nome nestes versos.
Porque é que se gosta tanto deste poema? “Shirley Ann Eales” parte de uma situação muito concreta no espaço e no tempo, aparentemente vulgar, passivel de acontecer a qualquer um mas tem o dom de a transfigurar em algo de muito maior, num poema que simplesmente abre para o mundo. A referência à “glacial cafetaria de franchaise” tem o condão de nos posicionar primeiro rente a uma contemporaneidade palpável e muito concerta (por exemplo no verso "e não se pode fumar"). Lembremos que a obra poética de um autor não tem necessáriamente que ser biográfica mas quando estamos perante um texto como este que vive bem sem o seu pretexto, estamos concerteza perante um bom poema.
Não julguemos que se trata de um poema fácil. Há por aqui muito ofício. A toada de aparente acaso que percorre o texto, por exemplo, distraí-nos de uma regularidade de quatro estrofes de exactamente dez versos cada onde o autor demonstra uma invejável mestria. Desde logo ao nível da narração. Existe aí uma sábia gestão da narrativa com uma meticulosa escolha do léxico, de que versos como “o dia destrata o desejo”, “espinhas estreitas// e rachadas da poesia” ou "conjura de repente/ uma vertigem", são bem exemplo. Depois, pelo contexto. Parece surpreendente como algo menor como um livro de poesia, ainda por cima usado, escolhido de uma estante escondida e bafienta de uma livraria com vocação alfarrabista, nos pode transportar tão longe, pode conter a chave perfeita para abrir a porta da imaginação. O estar na posse de um segredo - aliado ao mistério e ao acaso - são ingredientes suficientes para este poema funcionar. Porque nele interessa tanto o que lá está quanto o que não está: Que livro comprou afinal o narrador? (Não sabemos). E que livraria era aquela? (Não sabemos). Em que cidade inglesa? (Alguém sabe?) Seria Shirley Ann inglesa ou americana? (Que diferença faz?) Magra como a sua letra? (Who knows?) E que idade teria?
O mistério foi lançado. Mas nada disto parece ter importância perante a força de um nome, a revelação desse nome a que nos agarramos como náufragos, nome que se torna mágico, único, até sublime, proposto logo desde o título para atiçar o leitor, nome que é a única pista, evoluindo de um formal "Shirley Ann Eales" para um mais intimo "Shirley Ann", lá para o final. Se atentarmos bem ao conceito por trás do poema - por muito que o processo criativo possa ter sido subconsciente para o autor - é igualmente deste modo como a poesia funciona, que a poesia se partilha, de mão em mão, de afecto em afecto, e nós - os 300 leitores de poesia que nos andamos a ler uns aos outros- conhecemos bem o efeito de estremeção - para utilizar a expressão de Manuel Hermínio Monteiro - que certos versos que lemos descarregam sobre o coração. Uma só palavra, por vezes é suficiente - como acontece com um nome - para estabelecer conecção.
Rui Pires Cabral nasceu em Outubro de 1967 em Macedo de Cavaleiros. Licenciou-se em História-Arqueologia em 1990. Publicou em 1985 um livro de contos mas foi através da poesia que a sua escrita atingiu um assinalável grau de maturidade. A toada mais abstracta do seu primeiro livro deu lugar nos mais recentes, a uma poesia metonímica e figurativa quantas vezes surpreendente, onde as viagens, as cidades e a música são pretexto para uma escrita prosódica muito nítida. Rui Pires Cabral não esconde um gosto por um presente concreto no que de episódico e narrativo possa ter, e onde o mais pequeno acontecimento ou cena citadina serve para dele extrair um poema. Assim acontece por exemplo com "Alexandra Road", mas também com este extraordinário "Shirley Ann Eales".
OBRA POÉTICA
Geografia das Estações, edição de autor, Vila Real, 1994
A Super-Realidade, edição do autor, Vila Real, 1995
Música Antológica & Onze Cidades, Presença, Lisboa, 1997
Praças e Quintais, Averno, Lisboa, 2003
Longe da Aldeia, Averno, Lisboa, 2005
Capitais da Solidão, Teatro de Vila Real, 2006
Oráculos de Cabeçeira, Averno, 2009
SHIRLEY ANN EALES (2005)
Na vitrina lê-se Livros Raros
e Usados sob o azul inclinado
de um toldo – mesmo em frente
à glacial cafetaria de franchise
onde o dia destrata o desejo
e não se pode fumar. Subo
aos pequenos gabinetes
mergulhados no doce bafio
da literatura e percorro de A
a Z as espinhas estreitas
e rachadas da poesia. É o sítio
mais vazio de Novembro
e o que mais me reconforta;
o livro que escolho, por metade
de uma libra, traz no frontispício
um nome e uma morada: Shirley Ann
Eales, de Scottsville – um sumido
autógrafo de maiúsculas magras
e triangulares onde a imaginação
encontra por enquanto pretexto
e oxigénio suficientes para arder.
O livro teve outra existência,
pertenceu a outra casa, a outra mesa
de cabeceira – e o pensamento,
de tão óbvio, conjura de repente
uma vertigem, é um corredor
abrupto para a imensidão do mundo
onde trafica o acaso. Ah, sabemos
que a vida é improvável se damos
por nós a cismar, a meio de uma tarde
insípida, numa mulher desconhecida
que lia poemas em Scottsville, nos anos
70. Mas haverá aqui alguma espécie
de sentido, algum sinal guardado
para alguém mais sábio ou inocente
do que eu? Não sei quem és
nem onde estás agora, Shirley Ann,
mas como seria belo se pudesses
um dia encontrar, por obra da mesma
sorte, o teu nome nestes versos.
Porque é que se gosta tanto deste poema? “Shirley Ann Eales” parte de uma situação muito concreta no espaço e no tempo, aparentemente vulgar, passivel de acontecer a qualquer um mas tem o dom de a transfigurar em algo de muito maior, num poema que simplesmente abre para o mundo. A referência à “glacial cafetaria de franchaise” tem o condão de nos posicionar primeiro rente a uma contemporaneidade palpável e muito concerta (por exemplo no verso "e não se pode fumar"). Lembremos que a obra poética de um autor não tem necessáriamente que ser biográfica mas quando estamos perante um texto como este que vive bem sem o seu pretexto, estamos concerteza perante um bom poema.
Não julguemos que se trata de um poema fácil. Há por aqui muito ofício. A toada de aparente acaso que percorre o texto, por exemplo, distraí-nos de uma regularidade de quatro estrofes de exactamente dez versos cada onde o autor demonstra uma invejável mestria. Desde logo ao nível da narração. Existe aí uma sábia gestão da narrativa com uma meticulosa escolha do léxico, de que versos como “o dia destrata o desejo”, “espinhas estreitas// e rachadas da poesia” ou "conjura de repente/ uma vertigem", são bem exemplo. Depois, pelo contexto. Parece surpreendente como algo menor como um livro de poesia, ainda por cima usado, escolhido de uma estante escondida e bafienta de uma livraria com vocação alfarrabista, nos pode transportar tão longe, pode conter a chave perfeita para abrir a porta da imaginação. O estar na posse de um segredo - aliado ao mistério e ao acaso - são ingredientes suficientes para este poema funcionar. Porque nele interessa tanto o que lá está quanto o que não está: Que livro comprou afinal o narrador? (Não sabemos). E que livraria era aquela? (Não sabemos). Em que cidade inglesa? (Alguém sabe?) Seria Shirley Ann inglesa ou americana? (Que diferença faz?) Magra como a sua letra? (Who knows?) E que idade teria?
O mistério foi lançado. Mas nada disto parece ter importância perante a força de um nome, a revelação desse nome a que nos agarramos como náufragos, nome que se torna mágico, único, até sublime, proposto logo desde o título para atiçar o leitor, nome que é a única pista, evoluindo de um formal "Shirley Ann Eales" para um mais intimo "Shirley Ann", lá para o final. Se atentarmos bem ao conceito por trás do poema - por muito que o processo criativo possa ter sido subconsciente para o autor - é igualmente deste modo como a poesia funciona, que a poesia se partilha, de mão em mão, de afecto em afecto, e nós - os 300 leitores de poesia que nos andamos a ler uns aos outros- conhecemos bem o efeito de estremeção - para utilizar a expressão de Manuel Hermínio Monteiro - que certos versos que lemos descarregam sobre o coração. Uma só palavra, por vezes é suficiente - como acontece com um nome - para estabelecer conecção.
Ok, mas porque é que se gosta tanto deste poema?
4 comentários:
Eu cá não sou de cá, já disse. Por isso não vou dizer porque gosto do poema; digo só que deve ser tida em conta a opção de não gostar.
Eu gosto de não gostar de muitos bons poemas, peço desculpa...
Meu deus, como se pode dizer que é este o melhor livro de 2005!!!!! Estão todos doentes, ou são meros compadrios de se elogiarem mutuamente num circulo vazio de pequenos mediocres? Humberto Castro
Delicioso poema, talvez mesmo o melhor do livro.
Confesso, que os restantes estão muito aquém...
Claramente não me parece o melhor de 2005. Vale somente per este poema, que é de facto, francamente bom. Mas um poema não faz um livro...
Eu sei que não sou de cá mas, por vezes uma observação precisa de ser contextualizada, para que se perceba. Só para dizer que o blog, para mim, é um grande monumento à poesia.
... E pessoalmente gosto das escolhas, embora, não sei se disse, eu não seja bem de cá.
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