A poesia - eu já o deveria saber - não é tópico aconselhável para trazer como assunto de conversa ao local de trabalho. E eu tinha obrigação de o saber. Se excluirmos os colóquios que mantive com o Jorge Sousa Braga durante o internato geral no hospital onde apenas regressei muitos anos mais tarde para levantar o corpo de meu pai ou, as palavras que troquei com Duarte Correia acerca do lento e imerecido sofrimento do Eugénio, contam-se pelos dedos dos pés as vezes em que não fugi de assumir esse delicioso ofício na minha rotina hospitalar. Não queria que fosse assim. Mas, no instante em que pronuncio a palavra maldita, muitos são os que imediatamente fogem em pânico, culturalmente assustados, como se tivessem visto um bolseiro de dança faminto ou, variavelmente, fingindo-se ocupados com alguma tarefa realmente importante, dessas que verdadeiramente importam, dificeis e respeitáveis. Porque a poesia nunca foi coisa séria. A poesia é para quem não tem mais nada que fazer. Por isso, é um absurdo esta minha distracção de trazer poesia a contexto quando travo alguma discussão mais acesa, usando como argumento exemplos daquela que considero uma das artes mais dificeis. É inútil. E tolice. No outro dia, por exemplo, resolvi tomar partido por alguém mais jovem numa questão burocrática tendo por isso sido duramente criticado. Que não era nada comigo, diziam, que não me dizia respeito, que a coisa não me envolvia. Num acesso de paciência - algo que me vai faltando, - e para justificar o meu envolvimento, tentei argumentar com o poema "1938" de Pastor Niemöller, um pastor protestante que foi um dos pilares da resistência moral aos nazis:
Primeiro eles vieram pelos judeus
E eu não falei nada –
Porque não era judeu.
Depois vieram pelos comunistas
E eu não falei nada –
Porque não era comunista.
Depois vieram pelos sindicalistas
E eu não falei nada –
Porque não era sindicalista.
Então vieram por mim –
E não havia mais ninguém
Para falar por mim.
O que eu fui dizer! Que era um absurdo comparar a situação com qualquer genocídio que fosse, afinal a quem é que eu estava a chamar comunista e nazi, enfim! Esta minha outra gente é uma gente sem qualquer capacidade de abstracção, incapaz de apreender num poema uma ideia, o conceito. Outra vez foi com Kavafis e o poema À espera dos Bárbaros, ainda recentemente traduzido por Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis (Relógio d'Água, 2005) e um dos 10 poemas - se me perguntassem - da minha vida. Peço-lhes emprestado final da tradução. Nesse meu consílio, defendia eu que se deveria proceder sem mais delongas a certos melhoramentos nas instalações por forma a optimizar as condições de trabalho e o desempenho dos profissionais. Do outro lado da contenda perguntava-se para quê, já que seria trabalho perdido quando passassemos para as novas instalações, só ainda não se sabia muito bem quando. No poema do de Alexandria, os senadores passam o dia no senado adiando o legislar porque os bárbaros estão para chegar; os oradores não fazem os seus habituais discursos porque os bárbaros estão para chegar; e o tempo passa sem que nada mude, nada se faça, porque tudo será feito seguindo as ordens dos bárbaros. Mas,
(...) anoiteceu e os bárbaros não vieram.
E chegaram alguns das fronteiras,
e disseram que já não há bárbaros.
E agora que vai ser de nós sem bárbaros.
Esta gente era alguma solução.
Erro! De novo me perguntaram a quem é que estava eu a chamar bárbaro. Entreolharam-se espantados querendo saber o que é que eu queria dizer com isso de ser uma espécie de solução. Há um ano, a administração da clínica onde já não trabalho (também por isso), tomou a decisão muito discutivel de encerrar o bloco operatório - tão útil e económico que era - à conta da sua menor rentabilidade em tempos de crise. Fui contra a decisão alegando que o investimento deles estava pago e que se deveria potenciar a sua utilização esperando por melhores dias. Uma vez mais argumentei com um poema, desta feita, A árvore despida, de William Carlos Williams:
A cerejeira despida
mais alta que o telhado
o ano passado produziu
abundante fruta. Mas como
falar em fruta perante
tal esqueleto?
Embora possa estar viva
nela não há fruta nenhuma.
Por isso abatam-na
e usem a madeira
contra este frio cortante.
Nada! Não consegui que antevissem uma única peça de fruta perante os ramos despidos. Estes tempos modernos da gestão - tão estranhos que são à poesia, - cortam rente nas finanças mas não me levam o sonho. Por isso, de cada vez que lá passo - pelo bloco sem usura - e vejo a cerejeira despida transformada em armazém, não consigo deixar de pensar se aquele monte de entulho, de lá estar há tanto tempo, já não terá criado raízes.
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