OBRA POÉTICA
A Casa e o Cheiro dos Livros (1996), 2ª edição, Gótica, Lisboa, 2002
O Canto do Vento nos Ciprestes, Gótica, Lisboa, 2001
Nenhum Nome Depois, Gótica, Lisboa, 2004
§
[Os amantes aparecem no verão...] (1995)
para J.G.
Os amantes aparecem no verão, quando os amigos partiram
para o sul à sua procura, deixando um lugar vago
à mesa, um bilhete entalado na porta, as plantas,
o canário, um beijo e um livro emprestado: a memória
das suas biografias incompletas. Os amigos
desaparecem em agosto. Consomem-nos as labaredas do sol
e os amantes que chegam ao fim da tarde
jantam e de manhã ajudam a regar as raízes das avencas
que os amigos confiaram até setembro, quando regressam
trazem saudades e um romance novo debaixo da língua.
Levam um beijo, os vasos, as gaiolas e os amantes
deixam um lugar vago na memória, cabelos na almofada,
uma carta, desculpas, e um livro de cabeceira que os
amigos lêem, pacientes, ocupando o seu lugar à mesa.
Por tentador que possa ser ler um poeta à luz da sua biografia, num significativo número de casos tal exercício pouco acrescenta ao poema. Porque um dos méritos da grande poesia é essa espécie de identificação que se celebra entre leitor e poema que chega mesmo a desalojar o autor do seu próprio escrito. É esse o caso de “Os amantes aparecem no verão, quando os amigos partiram”, de Maria do Rosário Pedreira.
O texto alude de forma algo indefinida à condição de um narrador, presumivelmente feminino, que ocupa um determinado espaço onde se cruzam personagens - jamais nomeadas pelos nomes próprios - e que se poderiam repartir por duas categorias: os “amantes” (mencionados por três vezes) e os “amigos” (referidos por quatro), cada qual caracterizada por um momento específico, um lugar próprio, atitudes características e objectos singulares, numa diversidade de ritmos cíclicos que se anuncia e repete. É precisamente nesse jogo de entradas e saídas da casa que reside a mestria do poema. Se numa primeira leitura, o mesmo se nos apresenta intrincado e pouco nítido, cedo nos apercebemos ter sido precisamente essa a intenção da narradora ao condicionar o leitor a seguir na esteira dessas movimentações com o que pretendeu transmitir a ideia de desarrumação – não apenas da casa, onde as coisas vão mudando de sítio, – senão também, e principalmente, nas falhas do coração.
Porque lidos em detalhe, “amantes” e “amigos” obedecem a ciclos muito próprios. Desde logo no momento de entrada na casa: os “amantes aparecem no verão”, enquanto “os amigos // desaparecem em agosto” ausentando-se “até setembro”, remetendo estes versos para a estadia fugaz dos primeiros durante uma estação do ano que é - como eles - intensa mas (o mais das vezes) inconsequente, ao contrário dos “amigos” que ausentando-se durante um mês fluído e superficial regressam para os restantes meses do ano para uma cumplicidade séria e duradoira. Do mesmo modo surgem denotados com diferentes divisões da casa e por consequência com desiguais graus de afeição: “os amantes / deixam (...) cabelos na almofada”, enquanto que os “amigos” deixam e posteriormente ocupam “o seu lugar à mesa” remetendo a cama e a mesa - o quarto e a sala, - para diferentes níveis de envolvimento.
Isso mesmo é igualmente sugerido pelo peso dos verbos atribuídos à conduta das personagens: os “amantes aparecem” e “ajudam”, ou seja, comportamentos ocasionais e auto-limitados, enquanto que os “amigos confiaram” e “trazem” remetendo aqui para atitudes de estima e fidelidade. A autora pretende assim reforçar a ideia do nível de expectativas que é lícito esperar de cada um deles. Esta gradação de empatias e expectativas é também subtilmente transmitida por outro tipo de escalas: os “amigos” deixam apenas um “bilhete”, um curto recado, presumivelmente uma nota rápida - não necessariamente fechada porque partilhável, - descomprometidamente “entalado na porta”; os “amantes”, por seu turno, deixam toda uma “carta” carregada de “desculpas”, eventualmente justificativa de uma sensação de culpa que só se transporta num momento de partida.
O grau de envolvimento do narrador com os dois tipos de personagens fica definitivamente estabelecido quando nota que os “amigos” deixam “a memória / das suas biografias incompletas” como garante do regresso, enquanto que os “amantes / deixam um lugar vago na memória”, passível de vir a ser ocupado por outrem. Dos “amigos” ficam marcas de vida (“as plantas”, “o canário”, “um beijo”), restando somente dos “amantes” o delicioso transitório: a sobra de pequenas mortes (“cabelos”, “uma carta”, “desculpas”). Acabam assim por ser os “amigos” a devolver alguma estabilidade com o gesto de restituir o coração, personagem principal do poema, – figurado aqui pelo livro que dentro de casa vai passando de mão em mão, – do quarto para a sala, do acato para a procura, do mais íntimo para o comum, enquanto aguarda por novo amor. A contínua agressão a que é sujeito o coração, oscilando entre “amantes” e “amigos”, não pode senão figurar a dificuldade do verdadeiro amor porque a incompletude da amizade e a incompletude da paixão só por uma vez na vida se fundem no mesmo olhar.
4 comentários:
Este blog continua fabuloso .
Agora que já "fechei" o blog onde escrevinhava e apenas mantenho o "asas" e sem dar acesso a comentários, já posso dizer abertamente o que penso deste blog que tive a sorte de encontrar, sem que se possa pensar que venho pedir elogios como moeda de troca:
Este blog é fabuloso e o meu preferido.
Claro que ao autor não o deve honrar nada estas minhas palavras , pois não sou escritora nem pessoa importante.Mas adoro poesia e como a minha formação é em ciências, nunca aprendi a analisar os poemas e pouco sei sobre os poetas.
Por isso tenho aprendido muito , aqui.
"não o devem"...saiu "deve"
Bom demais ter achado este blog
A manhã chegou trazendo o cheiro e as formas do mundo para dentro da minha alma
Já posso descansar
Abro a mão que encarcerava as letras desencontradas e as deixo espalhar- se pelo travesseiro - dormiremos.
Um presente este blog
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