sexta-feira, janeiro 20, 2006

LUÍS QUINTAIS

Natural de Luena, Angola, Luís Quintais (n. 1968) veio desde muito novo residir para Lisboa, leccionando actualmente Antropologia na Universidade de Coimbra.
Partindo do real para a sua transfiguração, a sua poesia é culta, fortemente reflexiva denotando um percurso urbano e um olhar contemporâneo que releva a memória tanto quanto o presente das coisas, as pessoas e os lugares.
Galardoado em 1995 com o prémio Aula de Poesia de Barcelona com o livro de estreia A Imprecisa Melancolia, tem vindo desde então a dar à estampa uma obra poética segura e inteligente.

OBRA POÉTICA
A Imprecisa Melancolia, Editorial Teorema, Lisboa, 1995
Lamento, Edições Cotovia, Lisboa, 1999
Umbria, Pedra Formosa Edições, Guimarães, 1999
Verso Antigo, Edições Cotovia, Lisboa, 2001
Angst, Edições Cotovia, Lisboa, 2002
Duelo, Edições Cotovia, Lisboa, 2004
Canto Onde, Edições Cotovia, Lisboa, 2006
Mais Espesso Que A Água, Edições Cotovia, Lisboa, 2008

VISÕES DO MUNDO (1995)

Rua do Loreto. Todas as visões do mundo são parciais.
Como uma invenção de Vermeer
as traseiras de um edifício antigo
podem ser os limites da minha moldura.

Nada há de exaustivo
no olhar humano. A chaminé de tijolo tinge o céu
de um vermelho débil
que ele nunca teve.

Um universo de vozes,
infectos cheiros de cozinhas adjacentes, ruídos
que quebram o alheamento que sobre as fechadas
se perpetua.

Em baixo, uma varanda onde nunca está ninguém.
Nada sei da ausência que a varanda desvenda.
Do lado esquerdo, o parapeito alto confere-me a certeza
de que os meus domínios foram encontrados.

Neste perímetro de luz
procuro a consistência dos sentidos.
O território com que se abastece uma paixão descritiva,
o lastro da imaginação.



Uma das características intrínsecas à literatura é a potencialidade descritiva de que se reveste. À maneira de Vermeer no seu célebre quadro “Het Straatje” (“Rua de Delft”, c. 1657-58), Luís Quintais traz-nos a “Rua do Loreto”, onde a poesia, enquanto hipótese gráfica de um real, levanta inúmeras possibilidades à rua de cada um. É clara a intenção do poeta em delimitar um espaço que possa funcionar como mostra da capacidade que o olhar tem de fixar o real. Ao longo de todo o poema anota o que vê da janela mas não apenas o que vê, se não também o que ouve, o que cheira, o que sente. Imagens, portanto. É dentro desse espaço limitado que se coloca enquanto personagem.

Dou por mim profundamente interessado em tudo o que tem a ver com uma natureza artefactual”, sublinha Luís Quintais. “Tudo se passa como se a natureza – a natureza de que nos falam os românticos, por exemplo – deixasse apenas em nós uma vaga presença de nostalgia e perda. Mas mesmo assim sou menos receptivo a esta visão elegíaca da natureza do que se poderá pensar. Eu penso (talvez levado pelo meu pessimismo antropológico) que a natureza é o cárcere (um cárcere orgânico) do qual não há saída. Nós simplesmente estamos a criar outra natureza, e a minha poesia é também o testemunho disso”.

Esta vontade de circunscrever, de apreender o real no poema, revela-se repetidas vezes ao longo do texto através de vocábulos como “limites”, “moldura”, “domínios”, “perímetro” ou “território”. Como se de uma aprendizagem se tratasse – denegando “o alheamento que sobre as fachadas / se perpetua”, – o poeta vai descobrindo que não habita sozinho o seu mundo. Apercebe-se da presença do Outro – quem quer que seja ou sejam – pelo “universo de vozes” que se cruza em surdina, pelas “cozinhas adjacentes” que certamente alguém habita; o Outro que não tendo rosto se afirma através da “ausência que a varanda desvenda”; o Outro que tange os limites do poeta porque “o parapeito alto confere-me a certeza / de que os meus domínios foram encontrados”; o Outro finalmente, a quem o narrador somaria sua deriva de solidão nessa “varanda onde nunca está ninguém”. Significativamente, o que não é de somenos, Luís Quintais emoldura o seu mundo nas “traseiras” de um edifício antigo de certo por não ser alheio à certeza de que a grande poesia se faz pelo lado negativo, um pouco à maneira de Cesário, o poeta de Lisboa, que igualmente colocava a verdade no avesso da beleza em similares “infectos cheiros de cozinhas” ou “ruídos / que quebram o alheamento”. Só pelo lado negativo – pela face avessa do real – pode um poeta aspirar à “consistência dos sentidos”.

Todo o real é também uma construção, uma invenção humana (na dupla acepção entre o descoberto e o criado) ”, esclarece-me Luís Quintais. “Por outro lado, dir-se-ia que sou um poeta desse real que os meus poemas constroem enquanto invenção verbal que é uma das modalidades do real. Mais: interessa-me investigar através da poesia (e não só) todas as modalidades de invenção do real. A natureza enquanto artefacto, por exemplo, é uma dessas modalidades”.

É assim que apesar da “paixão descritiva” que motiva o poema – e prende o leitor com expressões como “Em baixo” ou “Do lado esquerdo” – não custa aceitar que talvez a “Rua do Loreto” até nem seja nada assim, que à maneira de um gatilho sirva apenas esta lírica para açular no leitor o “lastro da imaginação”. O que isto quer dizer é todo um programa de escrita: o poeta vai beber a um real palpável e concreto para depois o dar a ler sob a paleta da transfiguração. Afinal de contas “A chaminé de tijolo tinge o céu / de um vermelho débil / que ele nunca teve”.

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