quarta-feira, janeiro 18, 2006

MANUEL ANTÓNIO PINA

Natural do Sabugal, Beira Alta, Manuel António Pina (n. 1943) é licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra, tendo sido como jornalista do Jornal de Notícias que, desde 1971, exerceu a sua actividade profissional.
Após um período inicial em que a sua Obra Poética visita o Surrealismo pela pena de, entre outros, Clóvis da Silva, um falso heterónimo, o seu trabalho poético ganha renovado fôlego e assume-se como uma escrita rica, irónica, de forte cariz reflexivo e filosofante, tendo no provocado cotejo de contrários - identificação e negação, - e, principalmente, na Morte, ou na pequena morte quotidiana, temáticas recorrentes. Granjeando de grande admiração entre os seus pares, a actividade literária de Manuel António Pina não se tem confinado à Poesia, como género literário único, prolongando-se na Crónica, no Teatro, e particularmente, na Literatura Infantil, uma escrita de irreversível notoriedade.

OBRA POÉTICA
Poesia Reunida, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001
Os Livros, Assírio & Alvim, Lisboa, 2003


ESPLANADA (1991)

Naquele tempo falavas muito de perfeição,
da prosa dos versos irregulares
onde cantam os sentimentos irregulares.
Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,

agora lês saramagos & coisas assim
e eu já não fico a ouvir-te como antigamente
olhando as tuas pernas que subiam lentamente
até um sítio escuro dentro de mim.

O café agora é um banco, tu professora de liceu;
Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu.
Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes,
e não caminhos por andar como dantes.


Todos já lemos poemas irresistivelmente perfeitos, acerca dos quais apetece escrever vezes sem conta. Esplanada, de Manuel António Pina, é um desses momentos. Trata-se de um texto que alude de forma admirável, à inexorável voragem do tempo e dos lugares.

O poema articula-se entre dois tempos distintos: um, sedutor mas passado, onde se fruía o prazer do confronto e da procura; outro, presente mas inglório, incapaz de esboçar qualquer réstia de ilusão. Desde cedo fica claro no poema que tudo quanto o autor caucionava - desde um certo idealismo muito próprio da juventude até toda uma galeria de mitos capaz de figurar tal utopia, - tudo isso soçobrou à passagem do tempo por culpa das fraquezas da vida (“Dylan encheu-se de dinheiro”), ou da força da morte (“o Che morreu”).

A memória desse tempo único e irrepetível, de quanto se quedou em potência sobrepujado pelo tempo, deu lugar a um presente múltiplo e escusável, espelhado no plural e na minúscula de “saramagos”. A quimera estudantil quedou-se pela mais óbvia possibilidade (“professora de liceu”), as tertúlias deram lugar ao peso de outros valores (“O café agora é um banco”), e – o que é o mais insuportável, – a sensualidade que emergia da simples antevisão de um belo corpo feminino, também essa se esvaneceu fruto da passagem do tempo, que transformou a sedução de “caminhos por andar”, no propósito funcional de “coisas úteis, andantes”.

Em Esplanada, é toda uma geração que aceita por fim resignada, a evidência do sistemático incumprimento dos ideais e promessas que o tempo predizia. Estamos portanto perante a pior das motivações: um desinteresse pelo futuro desde logo precedido por um desapego ao presente.

Àqueles raros de nós que permaneceram, mesmo se cepticamente, mesmo se melancolicamente, fiéis a essa juventude comum (...) restam hoje apenas confusas memórias”, confidencia-me o poeta. “Por ali, pela esplanada do Café Piolho [ao Carmo, no Porto], passou muito da minha utopia soixante-huitarde: o movimento estudantil, as correrias à frente da polícia de Choque, as discussões intermináveis entre marxistas-leninistas, maoistas, guevaristas, trotskistas, esquerdistas, anarquistas, e, principalmente, as mais desmesuradas revoluções, desde as literárias às dos costumes. Muitos versos desrazoáveis ali escrevi eu, e, como eu, muitos outros de nós, a maior parte dos quais são hoje empresários de poucos escrúpulos e posses q.b. ou tão só políticos “burgueses”, quando não arrivistas. Ou então jazem para aí, apagadamente, em empregos cinzentos, com sonhos do tamanho medíocre do cartão de crédito ou do automóvel.

Afinal a grande poesia também pode contar histórias. Claro que Esplanada encerra ainda outro nível de leitura. Parece implícita no texto entre narrador e interlocutora, a conhecida “discussão” entre a rendição à prosa (“saramagos & coisas assim”), e a via de austeridade da poesia (“versos irregulares”) como duas das formas possíveis de um escritor cantar “sentimentos irregulares”. Parece aqui atribuir-se à prosa um tom de impureza fácil implicando-se a poesia na via do despojamento, própria de quem escolheu permanecer fiel à utopia. Sabemos bem que a poesia não trás dinheiro nem glória por isso me agrada pensar – já que nada em poesia é por acaso, – que as duas últimas sílabas da palavra título do poema são o epitáfio do autor ao pouco que restou desses dias.

Pina oferece à nossa Língua mais um excelente poema, sem dúvida daqueles que ficam completos e imensos, leitura após leitura após leitura. Mesmo o mais jovem leitor recém-chegado à poesia, pouco familiarizado com a década histórica onde o texto se funda, o poderá sempre ler à luz de um certo inconformismo que não raro surpreende algum período da juventude. Trata-se de um importante texto na sua Obra Poética onde o autor tenta definir a forma e o lugar do “eu” (descrito como “um sítio escuro”, uma metáfora do desejo), na relação consigo próprio ou com o outro em si.

4 comentários:

Anónimo disse...

Gosto muito do Manuel António Pina. Como sou actor, adoro as suas peças para a infância e os seus contos. Manuel António Pina é multifacetado e um óptimo escritor.

Anónimo disse...

Caro J.L.Barreto Guimarães:

além de leitor da sua poesia, sou "sócio-efectivo" do seu blog. Obrigado pelas pistas que vai abrindo para a leitura de tantos poetas.
Acontece que tb. gosto muito do M.A.Pina e que este "Esplanada" me marcou há muito, quando primeiro o li em "Orfeu-4", em 1989!
Só que aí, em vez de "saramagos & coisas assim", surge "Saramago & coisas assim". Ainda que uma e outra versão possam não levar a conclusões muito dispares, estou certo de que V. será o primeiro a concordar quanto à manutenção do texto do M.A. Pina. Obrigado.

João Luís Barreto Guimarães disse...

Caro Luis, obrigado pelo seu comentário. Se no entanto, consultar a POESIA REUNIDA de Manuel António Pina, Assírio & Alvim, 2001, pág. 155, irá constatar que houve um trabalho de reescrita do verso que aponta por parte do poeta. Mas é muito curioso como o poema o marcou tanto a si na altura que imediatamente notou uma diferença...

Anónimo disse...

João Luís,

Obrigado pelo seu reparo. O lapso foi meu que, tendo POESIA REUNIDA,não tive o cuidado de cotejar o poema com a sua publicação em Orfeu-4.
Na realidade, acontece-me muitas vezes ter, um por um, os livros de um autor e depois comprar as compilações só pelo prazer de as ter. Dá-me mais gozo ler em volumes separados, comprados em diferentes momentos da vida. E, claro, da vida da obra em questão.
Já agora, a M. do Rosário Pedreira é também uma poeta de quem gosto muito.
Obrigado, mais uma vez.