CADERNO AZUL Nº 10
Era uma vez um homem ruivo, sem olhos nem orelhas. Também não tinha cabelos, e só por convenção lhe chamávamos ruivo.
Não podia falar porque não tinha boca. E nariz também não.
Nem sequer tinha braços e pernas. Também não tinha barriga, nem coluna vertebral, nem mesmo entranhas. Não tinha coisa nenhuma! Por isso pergunto de quem estamos nós a falar.
Desta forma é preferível nada acrescentarmos a seu respeito.
É este o texto que abre o livro “Crónicas da Razão Louca”, que a Hiena Editora publicou em 1994, numa tradução de Sérgio Moita. DANILL HARMS (1905-1941) é um daqueles autores que qualquer leitor rejubila ao descobrir. Daniil Ivanovich Yuvachev ou Iurachov (de pseudónimo Daniil Harms ou Daniil Kharms ou ainda Daniil Charms) nasceu em S. Petersburgo no Inverno de 1905, e morreu à fome na prisão da mesma cidade no Inverno de 1942. Foi sempre difícil o seu relacionamento com as autoridades e as instituições. Em 1924 ingressou no Electrotechnicum da então Leninegrado, de onde foi expulso por “falta de participação nas actividades sociais”. Nos anos 30, quando a literatura soviética estava a dar sinais de se querer tornar cada vez mais conservadora, sob os auspícios do realismo soviético, Harms encontra refúgio na literatura para crianças. Danill procurou sempre ser sensivel às vanguardas no efervescente meio literário de S. Petersburgo. As suas pequenas histórias para adultos, porém, só viriam a ser publicadas duas a três décadas após a sua morte. São tipicamente curtos episódios de escassos parágrafos onde cenas de privação social ou pobreza alternam com apontamentos fantásticos e oníricas, frequentemente humorísticos e incongruentes. O mundo de Harms é, assim, imprevisível e desordenado, irracional e inexplicável. No post sobre a ironia prometi falar sobre ele: eis mais uma história que começa de forma aparentemente linear mas imediatamente é levada pelos inexplicáveis caminhos do absurdo.
SINFONIA Nº2
Não podia falar porque não tinha boca. E nariz também não.
Nem sequer tinha braços e pernas. Também não tinha barriga, nem coluna vertebral, nem mesmo entranhas. Não tinha coisa nenhuma! Por isso pergunto de quem estamos nós a falar.
Desta forma é preferível nada acrescentarmos a seu respeito.
É este o texto que abre o livro “Crónicas da Razão Louca”, que a Hiena Editora publicou em 1994, numa tradução de Sérgio Moita. DANILL HARMS (1905-1941) é um daqueles autores que qualquer leitor rejubila ao descobrir. Daniil Ivanovich Yuvachev ou Iurachov (de pseudónimo Daniil Harms ou Daniil Kharms ou ainda Daniil Charms) nasceu em S. Petersburgo no Inverno de 1905, e morreu à fome na prisão da mesma cidade no Inverno de 1942. Foi sempre difícil o seu relacionamento com as autoridades e as instituições. Em 1924 ingressou no Electrotechnicum da então Leninegrado, de onde foi expulso por “falta de participação nas actividades sociais”. Nos anos 30, quando a literatura soviética estava a dar sinais de se querer tornar cada vez mais conservadora, sob os auspícios do realismo soviético, Harms encontra refúgio na literatura para crianças. Danill procurou sempre ser sensivel às vanguardas no efervescente meio literário de S. Petersburgo. As suas pequenas histórias para adultos, porém, só viriam a ser publicadas duas a três décadas após a sua morte. São tipicamente curtos episódios de escassos parágrafos onde cenas de privação social ou pobreza alternam com apontamentos fantásticos e oníricas, frequentemente humorísticos e incongruentes. O mundo de Harms é, assim, imprevisível e desordenado, irracional e inexplicável. No post sobre a ironia prometi falar sobre ele: eis mais uma história que começa de forma aparentemente linear mas imediatamente é levada pelos inexplicáveis caminhos do absurdo.
SINFONIA Nº2
Anton Mikhailovich escarrou, fez «ah», voltou a escarrar, fez outra vez «ah» e foi-se embora. Tanto pior para ele! Vou antes falar de Ilia Pavlovich.
Ilia Pavlovich nasceu em 1893, em Constantinopla. Pequeno ainda, levaram-no para S. Petersburgo, onde concluiu estudos na escola alemã da rua Kirochnaia. Depois trabalhou numa loja, depois fez outra coisa qualquer, e quando começou a revolução emigrou para o estrangeiro. Olhem, tanto pior para ele! Vou antes falar de Anna Ignatieva.
Mas falar de Anna Ignatieva não é assim tão simples. Começa por que não sei nada dela, e depois acabo de cair da cadeira e esqueci tudo quanto tinha para contar. Vou antes falar de mim.
Sou alto, não sou nada parvo, visto com elegância e gosto, não bebo, não vou às corridas mas tenho um fraco por mulheres. E as mulheres não fogem de mim. Gostam mesmo que dê passeios com elas. Serafina Izmailovna convidou-me mais do que uma vez para ir a casa dela, e Zinaida Iakolevna também costumava afirmar que tinha muito prazer em ver-me. Com Marina Petrovna é que se passou uma coisa divertida, que desejo contar. Uma coisa banalíssima mas ainda assim divertida. Marina Petrovna ficou completamente careca por minha causa, careca como um ovo. O facto deu-se desta forma: um dia fui a casa de Marina Petrovna, e ela «zás!», completamente careca. Só isto.
E «zás!», é isto! O que os surrealistas franceses gostariam de o ter conhecido...
Ilia Pavlovich nasceu em 1893, em Constantinopla. Pequeno ainda, levaram-no para S. Petersburgo, onde concluiu estudos na escola alemã da rua Kirochnaia. Depois trabalhou numa loja, depois fez outra coisa qualquer, e quando começou a revolução emigrou para o estrangeiro. Olhem, tanto pior para ele! Vou antes falar de Anna Ignatieva.
Mas falar de Anna Ignatieva não é assim tão simples. Começa por que não sei nada dela, e depois acabo de cair da cadeira e esqueci tudo quanto tinha para contar. Vou antes falar de mim.
Sou alto, não sou nada parvo, visto com elegância e gosto, não bebo, não vou às corridas mas tenho um fraco por mulheres. E as mulheres não fogem de mim. Gostam mesmo que dê passeios com elas. Serafina Izmailovna convidou-me mais do que uma vez para ir a casa dela, e Zinaida Iakolevna também costumava afirmar que tinha muito prazer em ver-me. Com Marina Petrovna é que se passou uma coisa divertida, que desejo contar. Uma coisa banalíssima mas ainda assim divertida. Marina Petrovna ficou completamente careca por minha causa, careca como um ovo. O facto deu-se desta forma: um dia fui a casa de Marina Petrovna, e ela «zás!», completamente careca. Só isto.
E «zás!», é isto! O que os surrealistas franceses gostariam de o ter conhecido...
3 comentários:
Lol, divertido :)
Daniil Harms é um daqueles autores que qualquer leitor rejubila ao descobrir. É isso mesmo :)
E eu adorei conhecer(agora, aqui) esse autor.Mesmo sem ser surrealista. Mais uma vez, gostei e aprendi muito.
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