Escrevi aqui há dias um post acerca da alusão. A alusão – faltou dizer, – é um tipo especial de metáfora porque não deixa de encerrar em si mesma uma comparação entre duas entidades sem o recurso à partícula “como”. No poema 22, de "Sob Sobre Voz", João Miguel Fernandes Jorge termina com uma alusão que estabelece uma comparação implícita entre “A Ilha dos Mortos” e o jardim do repouso final. Ao contrário da comparação – que assemelha explicitamente duas entidades através do uso da palavra “como”, – a metáfora compara-as implicitamente sem recurso a essa partícula. O seu uso é passível, portanto, de produzir um maior efeito de leitura. Quando Gastão Cruz (Faro, 1941) escreve, em “Rua de Portugal” (Assírio & Alvim, 2002):
NA POESIA
Na poesia procuro uma casa onde o eco
existe sem o grito que todavia o gera.
utiliza, num simples poema de duas linhas, três metáforas seguidas, ao comparar implicitamente o “refúgio” da escrita a uma “casa”, o “poema” resultante a um “eco” e a “inspiração” que o gerou a um “grito”. Em nenhuma das três ocasiões utiliza Gastão Cruz a partícula “como” mas parece certo que as comparações estão lá. Tivesse o poeta escrito:
“A poesia é como uma casa…”
teria recorrido à figura de estilo da comparação mas teria também escrito um poema… pior. A metáfora é geralmente vista pelos poetas – com a possível excepção, talvez, dos expressionistas que tendem a preferir a sinédoque e a metonímia (outras duas metáforas especiais), – como uma forma superior de fazer poesia. A obra de Herberto Hélder, por exemplo, é densa em metáforas. A metáfora compara sempre implicitamente duas entidades diferentes mas com pelo menos uma caracteristica em comum. Por exemplo: o “refúgio” da escrita, em Gastão Cruz, é tão habitável como uma “casa”. O desafio que se coloca a um poeta que pretenda fazer uso dessa figura de estilo será então o de criar metáforas originais, comparações implícitas que ainda não tenham sido utilizadas. Chama-se cliché a uma frase, imagem ou metáfora “já com barbas”, usada por “dá cá aquela palha”, quase em “atalho de foice”. Já a metonímia – outro tipo especial de metáfora, – utiliza um objecto intimamente associado com outro mas como substituto desse. Quando eu digo que “ando a ler José Miguel Silva”, utilizo uma metonímia: é óbvio que não ando a ler o poeta mas os seus poemas, ou seja, escrevi o todo pela parte. Inverso é o caso da sinédoque em que se utiliza a parte pelo todo. No poema “Antiga Casa Faz Frio”, de Manuel de Freitas (Vale de Santarém, 1972), retirado do seu livro “Blues For Mary Jane” (&etc, 2004), lê-se:
"Os negros das obras respondiam-lhe
o melhor que podiam, esquecendo
por instantes os rabos e as mamas
que desciam apressadamente para o metro.”
Estamos perante duas sinédoques: a (bela) parte pelo todo. Um outro tipo especial de metáfora é a personificação. Nesta figura de estilo, algo não humano adquire uma ou várias características ou qualidades humanas, – é portanto comparada uma coisa, um animal, uma abstracção com o ser humano. É o que se passa no poema de Jorge Gomes Miranda (Porto, 1965), extraído do seu livro “Portadas Abertas” (Presença, 1999):
O candeeiro que comigo cumpriu
o serviço militar foi ferido esta noite
pela minha insensatez.
Infortunado estacou, lívido
o dorso curvado até não ser mais
do que um rumor cego.
Cortei o fio que o ligava ao mundo
decerto errei no cálculo, no golpe,
na afeição.
Quem poderá ajudar-me
a espiar esta culpa, levar-me a dançar?
Tu, que foste mais do que um companheiro
de camarata, irmão, quase um pai
permite que seja agora eu
a velar-te
todas as noites.
E retiro-me agora para “vale lençóis”. Ops! Um cliché! Má metáfora…
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